Museu da pessoa, Empreendedor Socioambiental

Museu da Pessoa por Museu da Pessoa

Edgard Gouveia Junior foi procurado por estudantes da Faculdade de Arquitetura de Santos, que já sabiam de seu trabalho em algumas comunidades, para coordenar os trabalhos no Museu de Pesca. Deixou de lado uma bolsa de estudos na Alemanha para mergulhar em um projeto revolucionário: a reforma coletiva do museu, que mexeu com toda a cidade e despertou a atenção de estudantes de arquitetura da América Latina. O Instituto Elos nasceu do sucesso da empreitada. Reúne estudantes de arquitetura que buscam lugares físicos e socialmente degradados para, junto com as pessoas daquela comunidade, melhorar as condições de habitação.

A base de todo o trabalho é a alegria, a motivação, o despertar das pessoas para liberar o potencial que todos têm de transformar a realidade em que vivem. O interesse pelo trabalho do Instituto Elos levou Edgard e a equipe a criar a Escola de Guerreiros sem Armas, com o objetivo de mostrar aos voluntários de todo o mundo, em um curso prático, como é possível transformar a realidade social e física de uma comunidade com poucos recursos e muita alegria e disposição.

HISTÓRIA COMPLETA

Transformar o mundo, o objetivo dos Guerreiros sem Armas

Essa experiência no Museu de Pesca foi muito louca. Conseguimos envolver toda a cidade. Praticamente todo mundo ia lá dar opinião, torcer para nós. Enquanto trabalhávamos no museu, percebemos que era um desafio empolgante e queríamos envolver o maior número possível de pessoas. Não era uma missão: salvar o museu mexia com as pessoas e todo mundo queria se envolver, nem precisava chamar. Como seria então ampliar esse desafio? A Escola de Guerreiros sem Armas seria formada por essas pessoas. Percebemos que um dos obstáculos era a apatia, uma doença contemporânea, que é quase uma paralisia. Isso porque estamos envolvidos por tanta notícia ruim, que acabamos fixando a idéia de que não somos capazes. O Guerreiro sem Armas é aquele que vai trazer uma esperança, dizer assim: “Olha, é possível e vale a pena.” E vale mesmo sonhar com utopias; não vamos dar comida à África, vamos mudar a África. As pessoas vão dançar cirandas, tocar tambores, ficar muito felizes.

SINOPSE

Transformando espaços

O forte vínculo de Edgard Gouveia Júnior com Santos, sua cidade natal, foi bem retribuído com o presente que deixou para a cidade. Segundo ele, é a Santos e a sua família que deve grande parte de sua formação. Com o intuito de devolver alguma coisa para o lugar que havia lhe dado tanto, Edgard coordenou o projeto de restauro do Museu de Pesca que, naquele momento encontrava-se fechado e sem grandes perspectivas de mudanças. A partir da experiência coletiva de jovens arquitetos na transformação do antigo e abandonado Museu de Pesca para um moderno e interativo, surgiram idéias, contatos e novos projetos. Um deles é a Escola dos Guerreiros sem Armas, criada a partir desta experiência. Só que desta vez a transformação de lugares teria que passar por um desafio maior: lutar contra a apatia e descrença de vidas adormecidas entre espaços deteriorados e esquecidos de centros urbanos e rurais. É nesta atuação que Edgard mostra uma maneira iluminada de transformar pessoas para transformar espaços, alimentando e estimulando sonhos coletivos que não se sentiam mais no direito de ter vida.

 

HISTÓRIA DE VIDA

P/1 – Edgard, para começar nossa entrevista vou perguntar de novo pra você. O seu nome completo, o local e a data de nascimento.

R – Meu nome completo é Edgard Gouveia Junior. Eu nasci na cidade de Santos, São Paulo. E eu nasci no dia 10 de maio de 1965.

P/1 – E o nome dos seus pais? O que eles faziam?

R – Meu pai chama Edgard Gouveia. Ele é desenhista técnico. E minha mãe chama Carmelita Marques Gouveia, ela é doméstica e massagista.

P/1 – Edgard, você cresceu em Santos?

R – Cresci em Santos, até 12 anos. Aí mudei dois anos, depois voltei para Santos.

P/1 – E como é crescer na praia? Você cresceu na praia? Que bairro você morava?

R – Eu morava no Boqueirão, próximo à praia. Fugia muito, eu saía de fininho, não achava que era fugir. Ia muito pra praia, caminhar muito na praia, brincava muito de pegar peixinho no canal. Santos é todo dividido por canais, né? Então tinha muito peixinho, Guarú, adorava pegar peixinho. A gente criava peixe em aquário, então, né? Um pouquinho da minha vida era assim: próximo ao mar, caminhadas próximo da água e muita relação com os peixes assim. Era gostoso

P/1 – Você tem irmãos?

R – Tenho duas irmãs. Uma mais velha: Taís, e uma mais nova, chama Lia.

P/1 – E como era o cotidiano da sua casa na infância?

R – Hum. Bom, ia na escola de manhã. Eu adorava ir na escola era muito legal. À tarde, eu geralmente, eu pegava patins, eu ia pra um centro comercial que tem perto da minha casa, um pequeno “shopping”. E tinha uma loja de animais, eu adorava animais. Então ia muito pra ver essa loja de animais, ajudar o dono a cuidar dos animais. E passear por esse centro. Então era muito assim: caminhada, patins; caminhada na praia, muita caminhada na praia. Adorava fazer caminhada na praia principalmente depois de chuva assim, pra pegar pedaços de troncos velhos, caramujos. Eu adorava fazer isso. E pegar peixinhos do canal. E cuidar dos meus peixes assim. E acho que; Ah, na maior parte do tempo também desenhando. Eu tinha um mundo muito introspectivo. Então pegava uma folha de papel branco, ficava desenhando horas e horas e horas. Minha vida era isso: era desenhar, cuidar dos peixes, os animais e passear no Super Centro.

P/1 – Você tinha turmas de amigos?

R – Eu tinha sempre; eu nunca tive muita turma de amigos. Tinha a turma de amigos do prédio. Então a gente ficava jogando xadrez, queimada. Então descia “pra baixo” do prédio; eu morava num apartamento de três andares, um prédio de três andares. Então tinha brincadeira lá de baixo: pega-pega, pique. Mas geralmente, assim, eu tinha um amigo, dois amigos mais próximos. Mas geralmente um amigo. Em etapas diferentes da minha vida. E era muito essa coisa de sair, pegar peixinhos no canal; na praia eu sempre gostei de ir sozinho, não ia com ninguém. E ia pro Super Centro que é esse centro comercial. Então, caminhar por lá, patinar. Então os amigos; quando tinha um amigo era nessa linha assim. Ou nas férias, aí nas férias sim. Nas férias a gente viajava pra lugares bem distantes. E aí tinha um monte de amigos lá. Ir pro meio do mato, ir pra cachoeira, ir pro rio. Lá já tinha bando de amigos. Mas bando de amigos mesmo só fora, só nas férias.

P/1 – Mas pegar peixinho no canal, era na saída do canal? Você pegava e fazia um aquário na sua casa?

R – É o canal ficava bem na frente da minha casa. Santos é uma ilha toda dividida por canais, né? É bem peculiar. Santos é bem conhecido por esses canais. Então, e muitos peixes vão sendo criados ali, os peixes são Guarús, Lebistes, são algumas espécies mais comuns e algumas coloridas. Então, tinha um esquema de pegar com umas latinhas, você faz latinha de leite Ninho assim, leite em pó. Então você fura o fundo dela, amarra os “barbantinhos” e você bota um pedacinho de pão e joga dentro da água. Então os peixinhos vão pra dentro, você cata como se fosse uma peneira, é uma armadilha comum, as crianças brincam disso. Aí você” pega; só que geralmente as crianças pegam, brincam e depois “solta” de novo, ou leva pra casa e os peixes morrem, né? É um peixe que ele é bem frágil pra trazer pro aquário. Mas eu tinha umas técnicas muito boas de cuidar deles. Então eles proliferavam em casa. Ficava muito feliz

P/1 – Que técnicas eram essas?

R – Ah, tinha de tratamento da água. Então, tirar o cloro, né? Então deixava descansando no escuro pra tirar o cloro. Tinham umas técnicas que esse dono da; seu Guimarães – lembrei – agora o nome dele. Esse dono é um senhor velhinho assim, parecia o Gepeto assim, do Pinóquio. Ele adorava animais, então ele ia me ensinando algumas técnicas de cuidar dos peixes e eu trazia isso pros Lebistes. Pros peixinhos de canal. Que eles não duram muito assim, quando você tira do canal. E os meus duravam todos.

P/1 – Você falou essa coisa dos canais, que Santos é uma ilha cortada por canais. Qual é a função desses canais exatamente?

R – A função dos canais é um projeto do Saturnino de Brito, que é um engenheiro-sanitarista muito conhecido aqui no Brasil e fez muitos projetos fora também do Brasil. E ele é um projeto de saneamento na verdade. De; Santos é uma terra muito úmida e tinha muita doença no início do século passado. Então ele foi construindo esses canais que iam fazer a questão da drenagem, que eles vão drenando a água do terreno. Terreno que eram antigos charcos, pântanos. Então drenava essa água, “foi” aterrados esses terrenos pra poder expandir a cidade. A cidade antigamente ficava concentrada no centro histórico, “próximo” dos morros. Então lugar mais seco e depois foi crescendo pro mar. Acompanhando uma expansão européia de uso das praias, de balneabilidade. Então eles foram esses espaços, a partir de secar esses terrenos e aterrar. A cidade foi crescendo pra lá. Pra isso ser possível e não acarretar doenças com muita umidade foi necessário fazer os canais.

P/1 – E Santos é uma cidade portuária e de escoamento de café. Tem essa imagem da sua infância? O porto?

R – Não, na minha infância a imagem já foi assim, o auge do porto foi um pouco antes da minha infância. Até hoje ainda tem muito café escoando por lá, mas a fase áurea do café foi antes. E, se bem que a economia ainda gira bastante em cima do porto Mas a minha fase, a minha infância foi vivenciada na fase da expansão da balneabilidade. Então aquela fase de muita gente descendo de São Paulo, construindo muitos prédios. Então muitas famílias têm aquela coisa; todo final de semana a cidade triplicava o número de pessoas com gente que vinha de fora. Também uma lembrança muito voltada à praia, ao mar. Então meus pais, todo final de semana eles faziam a gente ir pra praia, jogando vôlei, jogando frescobol, fazendo castelinho de areia, era essa nossa rotina. Parquinho à noite.

P/1 – E a sua escola? Onde você estudou?

R – Estudei na escola; no primário foi uma escola que chama Vila Rica. Aliás tinha o “prezinho” que – eu lembro – o nome também, chama Leonor Mendes de Barros. Era um jardim de infância público, municipal. Que é o melhor até hoje, ele é lindo, tinha um “bondezinho” antigo, tinha uma seringueira que eu adorava subir; eu adorava subir em árvore, sabe? Fazia o recreio, pegava meu “lanchinho”, subia na árvore, ficava lá em cima.

P/1 – Sozinho?

R – Sozinho. Eu adorava ficar. Ou com alguém, mas que tivesse coragem de subir. Mas eu adorava subir em cima dessa árvore, ou nesse bonde. Esse lugar era muito gostoso, era muito incentivado à arte. Adorava pintar e desenhar, podia ficar dias e dias fazendo isso. E eles estimulavam bastante, tinha muito material pra isso. “Pra” ser uma escola municipal, eles eram muito bons. E dali, todo final de ano tinha uma exposição de artes, trabalhos dos alunos. E uma diretora de uma escola particular em Santos, uma escola progressiva em Santos, viu os meus desenhos e adorou os desenhos, me deu uma bolsa. Ofereceu pra minha mãe uma bolsa de estudos num colégio particular, na parte do primário. Que meus pais não teriam condições de pagar. E essa escola foi a escola chamada Vila Rica. E que era uma delícia mesmo mesmo, uma escola meio assim alternativa. Não existe mais, atualmente. Mas eles incentivavam muito, muito a arte, esporte, então tinha horta. Coisas que em uma escola pública eu não teria encontrado. Então essa escola era deliciosa Tinha umas professoras de arte que eu adorava. Os amigos sentiam; os estudantes eram muito ricos, né? Tinha muita gente; – eu não sabia disso – não dava conta na época. Minha mãe quando eu fui pra lá ficou muito preocupada com isso. Como eles iam me tratar. Eu era o único negro da escola. Mas era super bom, porque todas férias tinha convite pra ir pra fazenda de um, cidade do outro, Campos do Jordão. Então muita coisa que eu não teria acesso normalmente tive por conta desse, de está nessa escola. Essas viagens gostosas.

P/1 – Ampliou assim o mundo?

R – Ampliou o mundo; eu não dava; pra criança, achava que era a coisa mais normal do mundo, né? Mas com certeza ampliou meu repertório, ampliou a possibilidade de encontros, meus contatos, né? São pessoas até hoje que tenho contatos, são próximas. Então foi; acho que principalmente a questão do nível de ensino assim, quanto eles estimulavam a criança a sonhar, assim a explorar. Então, ou seja, era uma escola pequena…

P/1 – Tinha um método diferente?

R – Eles tinham – não sei – qual o método até hoje que eles trabalhavam. Nunca, não tive a curiosidade, pesquisei tanto a Pedagogia, não tive a curiosidade de perguntar. Mas era muito assim, por exemplo, no segundo, terceiro ano de primário a gente já fazia a trigonometria. Então assim, sabe, a partir de construção de sólido, de cubo, hexágono. Então a gente sabia os nomes, sabia os ângulos. Então é uma coisa muito de construção. – Não sei – se era construtivista a escola. Agora que você está falando tô até com a curiosidade de buscar. Mas tinha muito esse lado de exploração, essa coisa de ter a horta, ter flores, tinha roseira. Então essa coisa, roseira cheia de espinhos, eles não tinham medo. Você tinha que aprender a lidar com aquilo, né? Mas pra mim, obviamente, a questão era do esporte, tinha um professor de Educação Física fantástico, o Juarez – lembrei agora – o nome dele, e uma professora de Artes, a dona Elza que eu amava também. Então levava pra exposição; sabe? Estímulo mesmo. Então se eu não tinha aula, se tinha um intervalo, uma hora vaga, a sala de aula estava sempre aberta. Então as coisas de argila, eu era apaixonado por fazer escultura, você tinha acesso a tudo. Isso era fantástico

P/1 – E o esporte. O que você praticava?

R – Lá a minha paixão era handebol. Quando eu conheci handebol; eu nunca fui muito fã de futebol. Mas eu joguei porque todo mundo jogava, então ia batendo papo; já era muito alto, né? Mas eu não curtia muito futebol. Então eu gostava muito de xadrez essa época, tênis de mesa. Eu jogava muito pingue-pongue. Aí brincadeira de criança: figurinha, bafo, essas coisas que eu gostava muito. Mas eu lembro, a minha imagem no local, é todo recreio jogando muito xadrez. Tinha uma turminha que era viciada em xadrez. Quando tinha handebol, largava tudo e fazia handebol. E o esporte ainda nessa época era isso. Fora dali eu fazia um pouco de atletismo. Começava assim, eu ia inventando coisas, né? Meu pai tinha um monte, tinha uma enciclopédia enorme, tinha uma biblioteca muito grande na sala. Meu pai sempre gostou muito de livros, né? Não teve uma formação muito grande no colégio, formal, mas ele lia muito e comprava muitos livros. Então tinha várias bibliotecas, várias enciclopédias, ficava lendo, esportes diferentes que tinham no mundo ou que tinham no Brasil e ficava inventando as regras. Então eu sempre gostei muito de esporte também.

P/1 – E educação religiosa? Teve alguma?

R – Sim, minha família inteira era Testemunha de Jeová, é ainda até hoje. Nossa formação assim, o cotidiano da Bíblia próxima, de conversar sobre isso, de orar nas refeições. – Acho – que influenciou bastante a minha formação. Assim, uma questão mais humanista, de vínculo assim com sagrado, foi muito legal. E a Testemunha de Jeová, eles tem uma ligação muito concreta, a espiritualidade na vida cotidiana, nas relações com as outras pessoas, com os teus vizinhos, com a tua família, de cuidado, no casamento, pai e filho. Eu acho que isso; a gente já tinha uma família muito estruturada, tive muita sorte assim. Nunca vi meu pai e minha mãe brigando assim, nem levantar a voz um pro outro. Hoje em dia reconheço que quanto isso foi importante pra nossa formação. Como é chocante ver em outras famílias que isso, às vezes, está no cotidiano o filho ver o pai brigando, a mãe infeliz. A gente não tinha; se é que eles brigaram a gente nunca soube. Nem discussão. Nem discussão. Era tudo um silêncio.

P/1 – Tinha uma pessoa que influenciou a sua personalidade? Além desses dois professores que você falou? Alguma pessoa que você…

R – Uma pessoa? Diretamente assim um ídolo, talvez uma coisa, não tinha. Com certeza meu pai e minha mãe. Bom isso todo mundo, né? Minha mãe assim essa relação que ela tinha de cuidar dos outros, né? A sensação que a gente tinha é que ela cuidava mais dos outros do que até da gente assim. Ela garantia que em casa “tava” tudo garantido. Ela sempre trabalhou fora. Então vendia filtros, vendia “tupperware” que era uma, aquela coisa, uma fase na época. Até que finalmente ela encontrou a massagem, era o dom dela, então ficou na massagem. Mas antes ela sempre fazia; acho que quando eu era bebê tinha uma pensão. Minha mãe cozinhava muito bem. Mas acho que a influência da minha mãe; todo mundo fala que eu sou muito parecido com a minha mãe. Então essa coisa da preocupação com o outro, com o próximo, de se despojar, de dar o que ela tem, tirar da geladeira, tirar da gente e dar pra quem está precisando. Então isso com certeza assim, ou genético ou de observação, também tinha essa coisa de cuidar dos outros. A família inteira tem isso: de se preocupar primeiro com outros que com a gente. O meu pai assim não foi uma influência direta de ficar copiando ele, né? De assim é meu ídolo, né? Como foi minha mãe. Mas essa influência indireta assim, acho que a atmosfera que eles deixaram em casa foi muito contagiante pra todos os filhos, pros três filhos. Do meu pai acho que essa história de ler, essa curiosidade assim, de… Acho que o fato de ele ter guardado aquela enciclopédia inteira ali, era uma coisa assim, sabe? E deixava a gente mexer. Ele não tinha problema com livro nenhum. Então quando eu era bebê gostava muito de desenhar, então tem um monte de enciclopédias que as primeiras páginas brancas dos livros eu desenhava todas. E nunca reclamaram, nunca perturbaram. Meu pai é calígrafo também. Então ele trabalhava o dia inteiro, e a noite ficava de madrugada fazendo caligrafia, que é quando ele ganhava mais dinheiro, né? Diplomas… Então – eu lembro – eu chegava a ficar impressionado, hoje eu fico impressionado porque eu sou arquiteto e vejo o cuidado que você tem que ter numa prancheta, né? Antes não tinha computador pra você desenhar no computador. Então qualquer coisinha que tocasse você borrava o teu desenho inteiro. E ele deixava a gente chegar perto da prancheta, a gente ver; sempre explicava dez vezes a mesma coisa. “Que é que você está fazendo pai?” “Que é que é isso pai?” Assim acho que esse carinho assim, essa amorosidade que meu pai e minha mãe tiveram; – acho – que foi esse clima de segurança dentro de casa, de garantia afetiva foi a grande influência. Pessoas marcantes e de muito tempo? Não tem pessoas de; foram pontuais de um ano, outro; acho que esse; e muito pelo, eu não tinha uma pessoa que influenciou diretamente que eu lembre, diretamente em mim assim, de dar conselho, de eu pedir conselho, de eu buscar. Mas eu sempre tive um foco muito em mim mesmo assim. Existia um mundo interior, assim onírico muito forte. Então o meu mundo real era o meu mundo de sonhos. Eu viajava pra onde eu quisesse. Eu só criava mundos, eu desenhava, materializava isso em desenhos, esculturas, com os peixes. Então tinha um mundo; ia pra praia então eu imaginava que “tava” viajando pra todos os continentes. Essa coisa tinha, esse Mundo Animal que é aquele, é um programa que tinha na televisão. Ah, aquilo Eu vi, não tinha quem me tirasse da frente da televisão naquele horário. Sentava, grudava na frente da televisão, e viajava tudo quanto é continente, tudo quanto é…Tinha aquela enciclopédia Os Bichos também, então eu sabia tudo de animais. Mas eu tinha um mundo muito meu assim, não era sozinho, mas era solitário. Então no sentido assim: não tinha tristeza, mas era um mundo gigante. Então, eu ficava explorando sozinho. Ficava sonhando eu sozinho andando pelas florestas. Eu tinha; não tinha uma coisa assim de ter o bando, né? Se alguém quisesse, ir não ficava esperando alguém querer ir. Eu já fui Se quiser vem atrás, e não atrapalha.

P/1 – Edgard, você tinha esse: O que você queria ser quando crescer? Ou sua família tinha alguma expectativa que você seguisse alguma carreira?

R – Minha família não, se tinha esconderam direitinho. Isso é muito legal também. Não tinham esse objetivo que fosse médico, fosse engenheiro, fosse… Eles tinham; meu pai eu lembro um pouquinho de que ele tinha uma; ele não falava isso tão claramente, mas ele tinha uma aspiração que a gente fosse independente, os três. Ele; meu pai tinha que trabalhar muito, né? Ele começou trabalhando na rua, abrindo rua, picareta mesmo assim. E ele desenhava bem e um dia um chefe dele, um engenheiro viu; ele trabalhava na Light. Companhia Light na época, que era a Eletropaulo da época. Dos ingleses. E uma vez na hora do almoço ele estava desenhando. Ele sempre foi muito autodidata, e buscava sua própria formação, fez um curso por correspondência de desenho. E ele, o cara pegou ele desenhando e falou: “Pô, mas você com esse talento, você não pode está aqui na rua abrindo vala, né?” E abriu uma vaga pra ele no escritório de desenho. E aí foi que ele fez a carreira dele, né? Entrou na Light. Mas sem um curso técnico, então ele não pôde ascender muito, entrar em cargos, porque segundo ele e segundo os amigos dele, era o melhor desenhista disparado. Melhor que os engenheiros que trabalhavam com ele na época. Todo dia eles ficavam pedindo dicas pra ele, né? Mas ele nunca pôde ascender de cargo, porque não tinha formação. Então, ele nunca me falou; eu não lembro dele falando assim: Oh, você tem que fazer uma universidade. Mas ele tinha uma vontade que a gente fosse independente, que a gente não ficasse dependentes de; ele tinha uma preocupação que a gente ficasse dependendo muito do trabalho braçal, sabe? De ter que trabalhar durante o dia e durante a noite, que nem ele fez pra nos sustentar. Tinha isso. Eu mesmo, obviamente, tinha um sonho, imaginava que eu ia ser veterinário, cenógrafo. – Não lembro – assim no sonho tão forte, lembro que eu gostava muito do Jacques Cousteau. Assim de expedições. Mas eu era muito volúvel assim, as vontades eram; às vezes, eu queria ser alpinista porque eu queria nos programas o pessoal… Então, rapidamente, eu entendi que eu queria fazer tudo. Eu queria fazer tudo aquilo assim. Eu queria fazer aventuras. Queria mar, queria deserto, queria espaço. Então fui ficando solto também nisso. E acabei escolhendo Arquitetura por conta disso. Porque foi Arquitetura assim: quando eu estava no curso técnico, no colegial que chamava na época, eu comecei a pensar, escolher o que “que” eu ia fazer. Eu saquei que eu ia poder fazer faculdade, ia conseguir uma bolsa. E meu pai não ia ter condições de pagar, mas eu já, nessa vez já tinha tido bolsa a minha formação inteira. No primário eu tive, depois no ginásio eu tive outra por causa do desenho. Depois no colegial já foi por causa do esporte. Eu já jogava voleibol. E ganhei bolsa no melhor colégio de Santos na época. Então já imaginava que eu fosse continuar conseguindo, já tinha essa tranqüilidade de que eu ia me dar bem, de uma forma ou de outra. Então comecei a pensar nisso e fui assistir aulas em universidade. Tinha uma professora muito legal de matemática que ela falou: “Por que você não vai assistir umas aulas?” Eu nem sabia que tinha essa possibilidade: entrar na faculdade e assistir aula. Então comecei a assistir em tudo quanto é lugar. E ia vendo assim que não era aquela maravilha que eu imaginava. Não ia ser que nem as aventuras que eu ia fazer, que eu escolhia o que queria fazer, e só o melhor que queria fazer.Lá tinha muita disciplina chata, né? Então já comecei a entender que a faculdade não ia ser aquela maravilha toda. Então falei: “Vou ter que escolher bem, né?” e no final, eu fazia um curso técnico de desenho técnico, né, desenho de Arquitetura e podia; todo mundo escolhia ou Engenharia ou Arquitetura. Fui assistir umas aulas de Engenharia, entendi logo que não era aquilo. E quando eu entrei na faculdade de Arquitetura falei: “Ah, acho que aqui eu agüento cinco anos.” Meu tema era: “Onde eu vou agüentar ficar cinco anos?” Porque eu já sabia que uma parte do programa ia ser o que eu queria. E uma grande parte não ia ser o que dá prazer, né? Então fiquei pensando onde que eu agüento. E na faculdade de Arquitetura, minha faculdade era espetacular. Então cheguei já “tava” tendo teatro, uma performance enorme, que eu falei: “Mas de arquitetura?” Eu já fazia desenho técnico, projetava casa no colegial. Aí uma coisa: “Mas o que isso aí tem a ver com edifício?” Então tinha um pessoal pintando aqui, um pessoal fazendo teatro ali. E as paredes todas pintadas Você chegava na faculdade assim, o chão da faculdade o pessoal deixava recados: “Estou no bar…” “Maria, estou no bar esperando você.” Aí outro assim: “O seu pilantra já estou meia-hora te esperando.” “To no ateliê.” Então assim você chegar na escola já era uma profusão de; falei: “Ah, aqui tem vida.” “Isso aqui eu acho que eu agüento sim.”

P/1 – Aonde era a faculdade?

R – Em Santos. Faculdade de Arquitetura e Urbanismo (FAU) Santos. Era muito conhecida assim. O pessoal muito conhecido no Brasil inteiro assim. Um pessoal muito criativo. Uma faculdade pequena. Era vespertina, tem 300 a 400 estudantes. Então naquela época lá o vespertino era à tarde. É uma comunidade muito unida, então o pessoal de primeiro, segundo, terceiro, quarto, quinto ano são muito próximos, saem juntos, fazem festa. Como está em Santos, né? Tem muita gente do interior, São Paulo, São Paulo capital. Então são aqueles filhos que os pais tem casa e apartamento, então os filhos vêm morar sozinhos, vem; Aproveita aquela vida que eles querem pra surfar, pra passear, pra acampar. Então tinha esse clima muito também de praia, assim de comunidade, muita liberdade, então andava de bermuda, “short”, chinelo. Os professores muito abertos, né, iam beber com a gente no bar, conversando. Então, na verdade ganham pouco, né?Muitos deles ganham pouco em Santos, mas vão correndo pelo prazer de está lá. A atmosfera em Santos é uma comunidade mesmo. O pessoal fica muito criativo com isso. Um ajuda o outro. Então, pra minha formação foi espetacular assim, abriu muito. O que eu era de muito fechado, introspectivo de criança assim foi uma vida muito; então meus sonhos, oníricos mesmo, introspecções, as florestas. Essa coisa de eu gostar de está sozinho se abriu um pouquinho com o esporte, ou até bastante com o esporte. O vôlei principalmente, né? E, e depois a faculdade acabou de abrir assim, aí fui pro social mesmo. Fui pro mundo.

P/1 – Só voltando um pouco. Como surge o vôlei na sua vida? Você é super alto. Teoricamente as pessoas falam assim: “Não, vai jogar basquete.”

R – Até hoje o pessoal pergunta assim: “Ah, você joga basquete?” “Não, vôlei.” Eu joguei basquete também, mas com 13, 14 anos. Eu gostava muito de esporte. E não sei como é que foi essa; engraçado porque quando eu adorava xadrez e isso era meio estranho. Não é estranho. Nada estranho Mas não era muito comum, né? Ou você gosta de uma coisa muito mais parada, ou você gosta de uma coisa mais… Eu gostava de tudo. Então queria explorar tudo assim. E – lembro – que tinha muita relação com essa coisa de enciclopédia que eu ficava lendo assim. “Ah, beisebol.” “Como se consegue beisebol?” Eu queria coisas novas e criar coisa nova, fazer tudo diferente, até hoje. E o vôlei eu deixei muito final, meu pai jogava vôlei. Então eu tinha alguma certa rejeição assim: “Ah, o meu pai jogava, eu não vou fazer isso.” “Quero fazer uma coisa diferente.” E todo mundo jogava futebol. Futebol assim, acho que por todo mundo fazer, né? Eu queria fazer coisas diferentes. Tinha vontade de explorar outras coisa. Então fiz tudo, fiz tênis-de-mesa, fiz xadrez, fiz um pouquinho de judô, fui fazer atletismo. Atletismo assim, o esporte que eu mais gostava de ver: as Olimpíadas o Pan-Americano, eu grudava na televisão, era atletismo. Então tinha um atletismo bom em Santos, a cidade também. Só que era longe. E eu nunca ficava pedindo muito isso pros meus pais: “Ah, me leva na natação.” Era ou eu ir sozinho, me virava. Quando eles descobriam onde eu “tava” fazendo. Ou eu não fazia assim, ficava criando uma coisa em casa. E o vôlei, ele veio, foi engraçado: Meu pai se aposentou e sempre teve o sonho de morar no interior, de criar galinha. Quer dizer, um sonho meio; e nós fomos morar lá pra uma cidade que é interior-litoral. É pertinho de Iguape, chama Pariqüera-Açu, perto de Iguape, de Registro.

P/1 – Pariqüera-Açu?

R – Pariqüera-Açu. Covo grande a tradução. Então, ela é considerada litoral, mas não tem praia. Então ela é uma hora do mar assim perto. Entre Iguape e Registro, no litoral sul de São Paulo. Então fomos morar lá. Então ele comprou pato, ele comprou ganso, comprou… Tinha um terreno gigante que era um galinheiro assim, que aí virou minha floresta também. Comprou dois cabritos assim. Então, tudo que ele tinha sonhado assim a vida inteira ele teve. E na cidade, era uma cidade muito pequena. Não lembro quantos mil habitantes tinham. Tinham duas escolas só, duas escolas públicas. E ou lá; então cidade do interior, ou você joga futebol; e lá tinha o voleibol. Tinha um professor que gostava muito do voleibol. E tinha, as duas escolas eram rivais assim de voleibol. Então voleibol é um esporte forte na cidade. E a minha única saída de não fazer futebol assim. E aí comecei com o vôlei e foi muito legal porque o vôlei é difícil. Então, geralmente todo esporte que eu fazia, eu fazia muito bem, aprendia rápido e já me destacava. E o vôlei era muito difícil, sabe? Você fazia os movimentos certos, manchete. É um esporte de muita precisão. Então me pegou porque eu tinha que ficar treinando, batendo bola na parede, sabe? Se eu não quisesse passar vergonha na quadra. Então demorou pra ficar um dos melhores jogadores lá. então tinha muito baixinho melhor do que eu, né? Então tinha uma coisa assim de eu querer me desafiar. Então foi o que conseguiu me segurar, nenhum outro esporte me segurava. Que eu aprendia rápido, jogava bem, aí já começava a me interessar pelo outro ali que também é interessante. E o vôlei me segurou. Aí meu pai cansou dessa vida de campo. Que não era tão maravilhosa quanto ele imaginava. E dois anos depois a gente voltou pra Santos. Quando a gente começou a acostumar; assim, eram os filhos; a gente não queria morar no meio do mato. Mas aí foi, e quando a gente foi pra lá foi maravilhoso, que a gente foi assim entrar no meio de floresta, então brincava de me perder, né? Então entrava assim duas horas no meio da mata, saía das trilhas: “Agora, vamos se encontrar.” Foi aí começou essa coisa de turma, né? Então tinha aquele bando de 15 moleques, ia pro meio do mato, tomar banho de rio, explorar aquela montanha que os pais não imaginavam, né, pegar passarinho. Então tinha essas; pegar peixe no rio, de peneira. Isso era; foi uma fase, foi um presente que meu pai acabou dando pra gente que virou “cotidiana”, né? Escola, volta, rio. Escola, volta, floresta. Então tinha muito essa brincadeira de mato. Que eu brincava, que eu vivia no sonho, no Mundo Animal, comecei a viver realmente, né? Então de ver onça no meio do mato, tinha onça. Isso foi muito legal. Mas me deu essa conexão com o vôlei. E quando a gente voltou pra Santos, eu imaginei que aí eu tinha que voltar pro atletismo que eu gostava muito. Eu voltei pra Santos, eu fui ver um treino de uma prima minha, que disseram que ela “tava” jogando muito bem, jogava no Santos Futebol Clube na época, tinha um time bom feminino. E quando eu fui ver eles jogando, era um vôlei de alto nível assim. Nem era o melhor do Brasil, mas comparado com o que eu jogava na cidade, aquela quadra de cimento assim, você não podia se jogar no chão. Elas davam aqueles peixinhos, mergulhavam, aquela coisa assim. Muita velocidade. Eu fiquei apaixonada por aquilo Falei: “Nossa vôlei é mais legal do que eu imaginava” Aí comecei, fui jogar no Santos. Dali, por causa do vôlei, logo no primeiro ano já ganhei uma bolsa nesse colégio que era muito bom. E aí foi, enfim, esse desafio. O time desse colégio que eu ganhei bolsa também era um time que era o melhor do Estado na época. Então foi ficando essa coisa de tender pro profissionalismo. “Tava” jogando no Santos, o Santos depois de um ano que eu jogava ali, o Santos montou um time profissional muito bom. E eu já comecei a ganhar dinheiro com 16 anos. Então já ia poder comprar minhas coisa, ajudar em casa, foi muito legal. E aí já começou a ter esse sonho assim, essa vontade de ir pra alto nível, né? Mas começou aí. E tinha uma qualidade, o vôlei – eu imagino – que ainda hoje tem: como não tem o confronto físico, de toque com o adversário, tem essa rede separando, tem uma qualidade muito boa de cooperação de família. A gente é muito mais próximo. Não tem uma violência muito explícita. A violência, no máximo tem gente que quer matar o outro do lado de lá mas tem que ser com a bola, né? E a bola não machuca muito assim, pode; então você vai, é uma coisa de pensar, de articulação. Então você não pode ser muito, não tem muita chance de você ser ou cruel com o outro ou; como é que fala? Injusto. Não tem necessidade de roubar De você não jogar o jogo. Que no basquete tem muito truque, né? Você pode, sabe? Tem pisar. – Eu lembro – que eu parei de jogar basquete por conta disso. Você pode jogar muito bem. Mas, às vezes, quando você vai se sair pra cesta, tem uns truques que o juiz não vê. “Neguinho” pisa o teu pé. E você estoura teus ligamentos por uma coisa que não é brincadeira. Mas, sabe, na ora de um jogo você apela pra outras questões que não estão no jogo. No universo basquete assim: você fica ligado, porque sabe que isso acontece. Mas são outras questões que não estão na questão técnica da tua superação e pra mim era muito importante essa coisa da honestidade, veio da minha família, né? Você não pode usar de roubo pra ganhar do outro, você pode se superar e superar o outro na técnica. E o vôlei oferecia esse ambiente. Você ser 100% honesto, né, direto. Então quem é melhor, é melhor mesmo. E tinha uma coisa de você sempre cumprimentar o outro. Termina o jogo você cumprimenta o cara. Então, parece a coisa do judô também, né? Você honra esse ritual de; então, é um ambiente que pra mim foi muito mais fácil, não foi muito chocante. Até pela minha formação religiosa, de honestidade, de não falar palavrão, de não querer detonar o outro, né? Então o vôlei; essas qualidades que o ambiente, a atmosfera do voleibol tem, né? E de constante superação foi fenomenal. E é fenomenal assim pra minha formação de hoje é igual, o vôlei é impressionante porque você ganha e perde a cada ponto, a cada momento. Então teu mundo rui, né, você perdeu um ponto terrível assim, está tal você perdeu, parece que o mundo acabou. Mas você tem que: o próximo ponto que já está indo, o cara vai sacar de novo e você tem que está inteiro e pronto, e a vida recomeça. Essa qualidade de, sabe, que o vôlei foi te dando você não perde.

P/1 – A gente vê agora nessas partidas assim, o último ponto, o ponto que você ganha a partida, ele demora pra vir. É assim um poder de reação enorme.

R – E concentração, e não se pode derrubar, você não desiste.

P/1 – Toda hora vira o jogo, vira o jogo e nunca fecha, né? Eu estava reparando nisso outro dia assim. É incrível mesmo.

R – E o que forma na gente, tanto é, que o jogador de vôlei a grande maioria deles se dá bem, assim profissionalmente. Ou continua mesmo no vôlei; mas profissionalmente ele se; agora o vôlei virou um esporte profissional em todas as áreas. Então geralmente eles se inserem na indústria do vôlei mesmo. Mas na época tinha muita gente que ia fazer ou Educação Física ou Engenharia ou ia pra uma empresa. Mas são pessoas muito determinadas, muito calmas, trabalham muito bem em equipe, né? Então trabalham muito bem sozinhas também. Então essa coisa de você tem que centrar no teu, sabe, na tua performance. Então não dá muito pra ficar olhando o outro, ficar corrigindo o outro. No vôlei jovem você até faz isso, fica um reclamando do outro. Mas no alto nível, você não tem tempo, você reclama uma vez, fala: “Pô.” E já volta a centrar no teu, porque a bola pode vir pra você no momento seguinte.

P/1 – Um segundo.

R – Então acho que, reconheço que o vôlei tem uma formação na minha personalidade assim, na minha forma de atuar. Foi muita sorte eu ter escolhido o vôlei no meio de tantos esportes que eu comecei a fazer, né? Que gostei, que me dei bem. Podia ser profissional em vários deles.

P/1 – Edgard, você ficou dividido entre seguir a carreira profissional no vôlei e fazer Arquitetura, e começar uma carreira de arquiteto?

R – Não, não Eu tinha uma facilidade muito grande de; eu tenho uma facilidade muito grande de abandonar a coisa, de deixar ir assim. Não tenho muitos apegos, né? Então o vôlei fez minha vida. Foi assim: jogando vôlei eu guardei dinheiro, paguei minha faculdade inteira com o vôlei, né? Que o meu pai jamais ia poder pagar. Eu viajei muitos países, né, alguns continentes por causa do vôlei. Que minha família jamais podia pagar. E eu trabalhando num trabalho comum demoraria anos, né? E se eu tivesse sorte Então o vôlei me deu muita uma estabilidade; antes de parar eu comprei um apartamento. Então assim, isso eu tinha 21, 22 anos de idade já tinha meu apartamento, né? Então deu uma tranqüilidade pra encarar a vida e fazer o quê eu faço hoje, escolher o que eu queria fazer, escolher o período, na minha faculdade eu escolhi até onde eu queria trabalhar, onde eu queria fazer estágio. “Não, quero fazer, melhor a formação aqui.” Então, não precisava de dinheiro e não precisava que alguém mandasse dinheiro. Não fiquei rico, mas eu guardei. Não tinha onde gastar, né? E as viagens o vôlei me pagava. Então me ajudou muito na minha formação. Mas – eu perdi – a pergunta que você falou Por que se foi difícil – lembrei – se foi difícil largar.

P/1 – Continuar no profissional do vôlei e passar a ser um profissional de Arquitetura.

R – Não – eu lembro – que tive uma questão assim: foi mais difícil meus amigos me cobrando, as pessoas começaram a me ligar: “Mas você vai parar? Você é louco?” Então essa coisa de soltar a comunidade do vôlei, do que o vôlei em si. Na época assim, eu estava já há três anos querendo fazer vestibular, querendo; o vôlei era a minha vida inteira. Eu sempre tinha uma estratégia de fazer três esportes ao mesmo tempo ou três coisas diferentes que eu não queria ficar preso a nada assim. A idéia de sofrer por alguma perda, sabe, pra mim era terrível. Então fazia três, quatro coisas ao mesmo tempo. Se uma acabasse, eu tinha mais duas outras três coisas que eu estava apaixonado. Então estava tudo muito bem. Mas, o vôlei eu gostei bastante Só que quando eu fui; quando eu percebi que toda minha vida era o vôlei, quando acordei assim e vi que toda minha vida era o vôlei e que se eu perdesse aquilo, de repente, eu podia ficar muito mal, eu falei: “Ah, não está certo.” Então comecei a relembrar quais eram meus sonhos. E a Arquitetura era um deles. Mas era um sonho assim que não era tão forte pra mim. Porque era no curso técnico, era o curso técnico aí eu ia fazer faculdade. Entrei na faculdade, aí tranquei, nessa época fui chamado pra jogar em São Paulo. Era muito dinheiro, era uma carreira mesmo, o vôlei “tava” estourando naquela época no Brasil. Então tinha que ir. Então, falei: “Vou” Mas era muito “cdf” também, falei: “Mas, vôlei, né?” Meu pai sempre falando que o vôlei não dá camisa a ninguém. Esporte não dá camisa a ninguém. E mal sabia ele, né? Que acabei; nessa época já ganhava dez vezes mais do que ele com 17 anos de idade, né? Então era; ele se assustou com aquilo: “Não dá dinheiro” Mas ao mesmo tempo eu também tinha medo: dá dinheiro quanto tempo, né? Já estava iniciando, dois anos, três anos depois. O que eu ia fazer? Então apostei três anos, fui pra São Paulo, só que o vôlei continuou crescendo, continuou dando dinheiro. Mas eu me dei conta assim que o vôlei, minha carreira ia até 30, 33 anos de idade e pronto Ia acabar, de repente, todo estourado com joelho, costas. E – eu já sabia – que não ia querer ser professor de Educação Física – já sabia – que não ia querer continuar.

P/1 – Você não teve essa tentação de fazer Educação Física?

R – Não, não tive. Não tinha. Eu queria outras coisas Nem sabia direito se eu ia; já fiquei pensando. Abriu um mundo grande, eu podia ir pra fora do Brasil. mas eu falei assim: “Ah, só pra começar vamos ver se é Arquitetura mesmo?” E voltei pra faculdade e foi delicioso Então assim, não teve; a única coisa que eu pensei duas vezes foi: Como é que vai ser pra mim? Eu fico imaginando eu tendo profissão e tendo férias uma vez por mês, uma vez por ano só um mês. Isso me deixava doente A idéia de poder só parar uma vez por ano pra descansar. Eu não conseguia, sabe? O vôlei você tinha algumas saídas, né? Ou mesmo o vôlei tinha poucas férias, mas era uma paixão Você não via o vôlei como uma profissão, né? Era uma paixão que por acaso dava um dinheiro. Mas eu fiquei imaginando: eu no escritório, sentado, e só um mês de parada não ia dar conta. Achei que não ia conseguir. Mas isso eu cheguei a pensar. Pensar na comunidade que eu ia perder de amigos, assim de não está muito próximo com eles. Mas eu nunca fui muito preso assim, de muita saudade. Então falei: “Ah, se eu quiser ver, vou vê-los, né?” Mas, na verdade, não devo nenhum tropeço assim. Eu fui, e essa coisa só de mudar de ares já foi bom. E nessa época eu também tinha contundido, eu tinha torcido o joelho. Tinha torcido o joelho uma vez, aí recuperei, aí como eu estava forçando muito o outro, torci o outro. Aí eu falei: “Tudo bem.” Mas isso era muito comum no vôlei. Então tudo bem. Era comum com todo mundo, mas eu achava que alguma coisa estava estranha. Aí quando eu torci a terceira vez esse aqui, eu comecei a pensar: “Ah, eu com 23 anos de idade assim.” Falei: “Será que…” Alto, né? “Será que eu vou querer ser um velho com 70 anos, 80 anos e ficar mancando pela rua?” “Então, vamos começar a pensar outra alternativa.” E comecei a rever o vôlei, o quê é que me estava me dando o vôlei, o quê é que ainda fazia bem. Entendi que o que eu mais gostava era viajar com o vôlei, era conhecer pessoas muito diferentes. Isso eu tinha possibilidade de fazer em outro lugar. Aí entendi que já tinha dado o tempo. E fui.

P/1 – Foi tranqüilo?

R – Foi ótimo. Foi outro mundo.

P/1 – Mas você chegou a trabalhar com arquitetura?

R – Trabalhei. De vez em quando eu ainda trabalho hoje. De vez em quando. A gente tem escritório de arquitetura. Funcionando, enfim, é muito bom o escritório. Mas, dentro da Arquitetura abriu um mundo, outra, assim; principalmente os encontros nacionais e latino-americanos de Arquitetura abriu um outro mundo, que foi esse mergulho pro social.

P/1 – É, vamos começar a falar disso, né?

R – É, pode ser.

P/1 – Como chegou essa…? Por esses encontros de arquitetura?

R – Foi. Na verdade, assim, tem uma história lá atrás ainda essa, Arquitetura me recobrou um encontro com a infância mesmo, né? Então teve esse gap interno que foi esporte, desenho, né? Esporte até a arquitetura. E acho que a arquitetura me conectou com uma questão de infância mesmo. Que era, por exemplo, essa fase que eu te falei na infância que eu era muito introspectivo, ligado com mato e animais, eu não gostava muito de gente, né? Assim, aliás eu não entendia gente. Era tudo muito estranho. Sabe aquela coisa meio de criança: não isso aqui… Porque não parecia de verdade. Então, o adulto mente pra criança, oculta. Então, e criança saca isso, eu era muito sensível a isso, sabe? Meu corpo reagia muito essa coisa de alguma coisa não está certa aqui Até hoje é assim também. Alguma coisa não está certa, não to entendendo, tendo a começar sair e buscar um lugar que esteja mais, sabe? Meu corpo está dizendo: sim. Então têm relações interpessoais, grupos, atmosferas assim; hoje em dia até já aprendi a transformar essas atmosferas, né? Mas antes eu tinha que fugir dali. Então, todo lugar de gente era meio estranho. Então, criança sendo má uma com a outra, sabe? Criança tem muito isso: quando está brincando é tudo legal, mas quando começava a querer fazer aquela turminha pra acabar com o outro, e criança sabe ser perversa quando quer, né? Dá até uma questão de treinamento em sobrevivência. Então isso eu nunca me adaptava muito. Ficava tentando salvar o outro, que ia ser aprontado com eles. Mas a principal conexão que a arquitetura me fez foi com duas questões muito fortes. Quando era criança, essa coisa de gostar muito de animais, eu era apaixonado principalmente por tigre, por felinos, grandes felinos, apaixonado Mas tigre era assim, tigre e pantera era o que eu mais gostava. E baleias, cetáceos. Adorava, pesquisava, desenhava. Desenhava muitas baleias, sereias. Adorava essas coisas de criança.

P/1 – Você ia àquele museu lá de Santos, que tem o esqueleto daquela baleia?

R – É. Aliás, a gente trabalhou, a gente fez a restauração daquele museu.

P/1 – Ficou maravilhoso.

R – Ficou? Ah, que bom. A gente gostou mesmo assim, foi bem sonhado. Mas acho que essa história que ligou da infância foi um choque Nessa época eu já sonhava que ia trabalhar com animais, com natureza, ia pro meio da África. Mas eu lembro de uma cena que foi muito chocante pra mim que eu recuperei anos depois na arquitetura: foi uma cena do Mundo Animal, que era uma série sobre os tigres. E eu lembro de um tigre fugindo; pra mim o tigre era assim o animal mais poderoso do mundo, né? Gigante, enorme, quase três metros e pouco de comprimento, o bicho. Então, nada podia mexer com o tigre, né? E – eu lembro – da cena, do rosto, da cara dele, desesperada assim, né, acuada. E era uma caçada ao tigre na Índia. Então ele ia fugindo e os caçadores estavam muito longe dele. E o tigre pra mim sempre foi uma coisa muito esperta assim, ele fugia, escalava, se escondia, às vezes, passa a pessoa por ele, e ele está lá “paradinho” no meio do bambu, ninguém vê. Então, tem essa coisa muito, era muito poderoso, né, aquele animal E ver aquela expressão dele de medo, desespero na cena, me chapou assim a primeira vez que eu vi. E fui continuando vendo a cena. Então, estavam os caçadores indianos com elefantes e eles faziam barulho na mata assim, iam fazendo barulho. E aquele barulho foi deixando eles desesperados. E eu pensei assim: Mas como esse animal tão poderoso, está desesperado com barulho, né? Pra mim ele podia derrubar aqueles elefantes, podia derrubar as pessoas e, né? Então, foi ali, eu comecei a tomar a dimensão, foi quando caiu a ficha, devia ter uns sete anos de idade. Caiu a ficha de quão poderoso o homem é. Porque tinha vários “mundos animais” que falavam sobre isso, de como o Homem vai destruindo e como ele foi tirando o hábitat. Mas era uma coisa que pra mim era assim: ia tirando o hábitat e os animais tinham que fugir, né? Mas com o tigre jamais ia mexer. Então, foi ali que eu; caiu alguma ficha que eu não entendi também Mas a cena pior que eu tenho até hoje na minha mente assim, é muito “punk” “pra mim” lembrar: ele parou debaixo de um bambuzal assim, tinha um capinzal, os caras ainda estavam longe dele, mas ele estacionou e ficou paralisado assim. Sentado assim, deitado embaixo do bambuzal e tremia. Mas ele não sabia pra onde ir. Aquela sensação de desespero, que ele não conseguia se mexer Ele não conseguia; nem que andava de um lado pro outro que nem na jaula. Ele ficava deitado, paralisado no chão e tentava, sabe, com espasmos assim de fugir. É assim, eu tenho muito claro a cena na minha mente assim, se eu ficar muito focado nela eu vou começar a chorar. E; mas era; a sensação, ele deitado no chão e os espasmos; quer dizer, que ele assim; e a cara dele. O rabo pra tudo quanto é lado. E não conseguir saída. E os caçadores ainda longe cercando ele, mas ele já tinha, a desistência dele, a paralisação dele frente ao poder que o homem pode ter. então pensei: Como é que a gente, um corpinho desse, não tem garra, não tem nada e consegue fazendo barulho, assim quanto. Então ficou, essas informações todas na minha cabeça não encontravam lugar. Eu fiquei muito assustado e muito impactado com aquilo, fui resolver isso muito anos depois. Mas aquela cena do animal mais poderoso que eu via no planeta, entendeu? Ficar paralisado com alguma coisa tão mais simples do homem me deu alguma distorção aí assim. Que depois eu fui significar como poder que o homem tem sobre, né? O ser humano tem sobre tantas outras coisas usando estratégias, né? Então, como que todo planeta pra mim assim: o poder que o mundo animal tinha, que pra mim estava especificado no tigre ficou em como todo um planeta está a mercê do que a gente pode fazer. Do poder que o homem pode fazer. E esse homem pode ser qualquer um. Como eu não gostava de gente na época, eu não tinha uma relação afetiva assim. Era; gente pra mim era uma coisa mais ameaçadora. Até porque o Mundo Animal falava muito sobre isso também. Então tinha essa imagem do homem que era um ser que se ele quisesse ele podia destruir, né? Então, estava na mão dele. Então isso me deu; plantou uma semente dentro de mim que foi marcante. E uma segunda, que eu fui recuperar assim, fui sair desse trauma lá na arquitetura, alguns anos atrás. E entender, significar essas coisas todas pra transformar em ação. Em transformação de ação, né? E a segunda foi uma cena que foi, que essa também eu vou ter que cuidar pra não chorar, foi uma cena que era bem pequeno também, talvez até antes dessa do tigre. Não consigo precisar a data. Talvez sete, oito anos de idade. Que eu “tava” em frente da televisão e de repente vem uma cena de umas pessoas; aliás, a primeira cena…foi essa mesma, algumas pessoas no arame farpado. Que era do Nazismo, campo de concentração. Então as cenas em preto e branco são sempre cenas clássicas. Preto e branca e umas pessoas assim que elas seguravam no arame farpado, e magras, muito magras com aquelas roupas listradas. E o olhar é um olhar vidrado assim seco. Então gravei muito olhar assim. Eu era muito pequeno mas essa cena assim, alguma coisa naquele olhar e na ausência de movimento; era um movimento assim, uma coisa assim sem vida, parado assim, uma pausa, uma ausência de vida ali E com o corpo vivo, né? Então; hoje, são palavras que eu consigo dizer hoje Mas, assim essas sensações causaram assim: primeiro eu via aquilo e só achei estranho. Não entendi nada. Não chorei, não sofri, só. E grudei na televisão. Aí tinha uma segunda cena: que eram umas pessoas jogando umas coisas assim no; que eu também – não entendi – na minha cabeça, mas o meu corpo reagiu muito forte. Eu lembro muito claramente assim; não é que eu lembre, é que quando eu lembro disso, meu corpo volta pra mesma reação. Então tinha um calar, sabe assim? Uma; e a sensação que “tava” era que algo ia me sufocar, algo como se passasse o mínimo de respiração, como se tivesse alguma coisa invisível, uma venda invisível, uma gosma invisível que pegava o meu peito. – Eu tenho – essa sensação até hoje assim, aqui assim. Então eu respirava menos, eu tinha, é como se tivesse um mínimo de oxigênio pra ficar meio só sobrevivendo ali. Então não tinha pulsação, eu fiquei nesse estado de letargia frente àquela cena. Então, eu não entendi, mas meu corpo entendeu o que “que” era. E passou umas cenas seguintes, e aí vinha assim, aí que eu entendi que eram corpos. E a quarta cena; então pegavam esses corpos, eram aqueles mesmos caras de trás que iam jogando assim, então empilhando numas piscinas enormes assim. E a quarta cena foi quando apareceu um foco e alguns dos corpos se mexiam ainda… Assim, eu não sei quanto tempo levou, mas… eu não tinha estrutura pra significar aquilo. Não tinha onde colocara aquelas imagens. Só caiu a ficha, algumas conexões que era gente que “tava” fazendo aquilo. Mas não sabia o quê é que era Hitler, o quê é que era. Só cenas que são clássicos da criança, né? Estão no arame farpado, estão presas, alguém prendeu. Então – não sei o que é aconteceu dentro da minha cabeça, mas eu não tinha estrutura pra segurar aquilo. E aquilo ficou comigo anos. Então, eu devo ter durado; minha mãe me conta que ela chegou, depois de um tempo ela chegou me viu; e tinha umas poltronas grandes assim que a gente ficava assistindo televisão, então quem estava atrás não via, né? Então, ela chegou e eu estava chorando. Chorando, chorando, chorando. E ela viu a televisão não sabia o quê é que era. Não tinha visto mais. Ficou desesperada que tinha assim que já tinha essas cenas, às vezes, de chorar, o Mundo Animal eu chorava porque tinham matado uma baleia, né? Então ela, mas ela falou que essa vez que eu chorei muito, e ela ficou muito preocupada sem saber o que é que era. E, a partir daí comecei a fazer umas perguntas, passava de tempo em tempo meu pai me contava, né? Eu fui perguntar pra ele alguns anos atrás, ele contava que passava um tempo eu fazia uma pergunta. Falei: “Pai, mas que é que é o Nazismo, né?” Aí contava alguma coisa: “Pai, mas por que é que deixaram aquilo acontecer? O mundo sabia?” Então, quando começou a vir perguntas na minha cabeça eu ia perguntar pra ele assim: “Mas as pessoas sabiam aquilo?” Porque tudo bem que os alemães fizeram aquilo, ou aqueles alemães fizeram aquilo, mas tinham os países vizinhos, tinham, sabe? “Será que um vizinho…” Então, eu tentando montar minhas lógicas e como aquilo aconteceu. E aí ia crescendo e ia sabendo mais notícias, que eram milhares de pessoas, milhões de pessoas. Então, não tinha o que fazer com aquilo. Essa sensação de algo me sufocando; isso ficou muitos anos comigo sem eu me dar conta. Então ficou; acho que o vôlei, o esporte assim me deu essa vida, essa busca, voltar a respirar e agir, fazer coisas. Mas na arquitetura, quando eu comecei a lidar com favela de novo e mergulhar nesse mundo, foi que eu recuperei essa história de assim, essa conexão do que acontece com a favela e como é que, o que está acontecendo na África, né? Que é outra questão pra mim; ou a seca no Nordeste. Então na arquitetura, por exemplo, eu tive; no vôlei eu comecei a ter mais grana e fui, queria fazer uma viagem no sertão. Pra ver como é que era lá. As coisas que eu via de infância, né? Criança brincando com ossinho, essas coisas, esses clássicos, essas imagens, né? E foi ótimo ir pra lá porque eu cheguei lá, as crianças brincam, elas riem. Então as crianças têm galinha. Então tem uma miséria, mas não é só aquela miséria que a televisão fotografa, né? Que mostra o pior, né, que é o que interessa, que é o que toca as pessoas, que é a imagem que vende. Mas tem alegria, tem dança, tem comunidade. Então isso, né, me deu um fôlego assim que não está; tem um foco de vida que dá pra você trabalhar em torno disso e ampliar esse foco de vida. Tem um foco de luz ali no meio da escuridão Então, tem o que você fazer, né? E o Nazismo não tinha mais o que fazer. Passou. E eu sofria, não me acalmava que aquilo não acontecia mais. Minha mãe falava assim: “Isso não acontece mais.” Mas está acontecendo na África, está acontecendo aqui em São Paulo, a favela em Santos. Então, a arquitetura foi o que me deu um braço de tocar nisso. De agir. E aí que eu caí a ficha, que voltou essas imagens. E, eu poder limpar isso agindo, né? Eu poder transcender essa dor, esse trauma com ação.

P/1 – Na arquitetura você foi trabalhar com favelas?

R – Fui. Na faculdade quase não se falava sobre isso. É que minha faculdade, por sorte, ela tem disciplinas, uma disciplina de Urbanismo, ela tem todos os anos. Que não tem mais nenhuma no Brasil que tenha. Ela vai fazer tipo os dois últimos anos, o último ano. Então no Brasil você vai ter que…

P/1 – É aquela que ninguém quer cursar, né?

R – É que ninguém gostava. “Ah, cidade.” E todo mundo quer fazer grandes edifícios, né, escolas espetaculares, casas maravilhosas. Então, ficar desenhando cidade, esse esquema, estudando política, não é muito o é que arquiteto – entre aspas – queria. Agora já é mais comum, muita gente quer, tem muito campo de trabalho. Mas ali tinham professores muito bons e que levavam a gente pra favela mesmo, né? “Vamos lá ver” Então essa realidade está mais presente. Mas iniciei a ver uma vez, voltava, não via mais e ficava, começava a desenhar. Via as fotos de cima e fazia projeto. Você não ia lidar com as pessoas, conversar com as pessoas, você via desenhos, né? Estruturas. E pra mim não adiantava, pra mim eu tinha a imagem do Nazismo lá. Tem gente aqui no meio. Não adianta me enganar Mas nos encontros de estudantes de Arquitetura tinham mais pessoas que tinham essa mesma dor. Tem muita gente que foi tocada por isso, por algumas imagens, né? Então, quando fala de urbanismo ele queria falar de gente. Mas aquelas pessoas, o quê é que elas sonham? Então a gente começou a desenvolver esse senso mais humano também, de fazer sentido o que as pessoas querem, o que as pessoas sonham, quais são os desejos delas, de onde elas vêm. Então, descobri que aquelas pessoas que estão lá; a gente tem aquela imagem de gente, sabe? Que não é gente quase. Que perdeu muito a humanidade, a dignidade deles. Mas você não sabe que no Nordeste eles brincavam no rio e caçavam; sabe? Que são pessoas em plena luz. Mas que ali elas estão, elas não são aquilo. Mas elas estão aquilo, né? E nem, às vezes, estão aquilo naquele lugar. Porque, às vezes, se você chega e depois você conhece eles, eles chamam: “Ah, vem cá.” “Vai ter uma festa tal.” Eles estão pulando, dançando, brincando, são muita vida. Não é aquilo que você vai lá e vai ver, né? Então já dá, com essa vida se dá vontade de trabalhar. Com essa missão.

P/1 – E quando vem a idéia de criar o Guerreiro sem Armas?

R – Guerreiro sem Armas, veio depois da experiência do museu. A gente fez o Museu de Pesca. Que foi…

P/1 – Vamos falar um pouco dessa experiência. Eu achei tão bacana.

R – Do Museu?

P/1 – Ela tem um outro olhar assim. Ela é tão lúdica.

R – É.

P/1 – Que eu conheci o Museu em dois momentos: ele super tradicional, de 30 anos atrás…

R – E ele agora.

P/1 – E ele agora.

R – O Museu foi uma experiência, foi assim: veio uma experiência de amor à cidade. Eu, quando terminei a faculdade, eu fui, ganhei uma bolsa, me ofereceram uma bolsa na Alemanha, né? Pra estudar lá. Eu terminei a faculdade, fui trabalhar num instituto, chama Tibá, na serra do Rio, perto de Nova Friburgo. Chama Tecnologia Intuitiva e Bio-Arquitetura. Lugar super interessante. Só isso demoraria uma hora pra eu falar, então não vou falar. Mas, basicamente assim é um arquiteto holandês, ele chama Johan van Lengen, que é uma pessoa que, ele morou muito tempo na Índia, no México. Então ele é um super arquiteto modernista, internacional. Mas começou a ter contato com comunidades tradicionais, se apaixonou e entendeu que eles têm muito conhecimento e arquitetura deveria ser voltada pra esse conhecimento que eles têm. Uma arquitetura muito mais rica e diferente, diversificada no mundo inteiro. Que é exatamente a minha paixão. Voltou àquela paixão de infância: viajar, conhecer pessoas diferentes, lugares diferentes. Então, encontrei esse cara, adorei e fiquei com eles, fiquei trabalhando com eles cinco anos, contato com eles cinco anos, trabalhando diretamente três anos, morando lá. Dali, foi com ele que teve essa oferta de bolsas na Alemanha e na Holanda. Voltei pra Santos, pra arrumar minhas coisas. Mas tinha uma sensação, uma clareza de que se eu fosse pra Alemanha eu não ia voltar mais, né? E nessa época eu já tinha me dado conta de que muito do que eu tinha foi que a cidade de Santos me deu, experiências lá: de ir pra praia, de pegar peixinho no canal, abertura que essa população de Santos têm, que é essa coisa de ser porto, receber muita gente, ser praia, receber muita gente. A gente é muito aberto. Quer fazer amigo o tempo inteiro. Convida as pessoas. Então muito do que me facilitava minha vida no mundo inteiro, sabe, de eu poder conversar; apesar de ser introspectivo, ninguém percebe Consigo conversar, consigo abraçar. Então, essa coisa de me sentir à vontade em qualquer lugar do mundo, eu me dei conta que foi presente da minha família e presente da minha cidade. Então, eu tinha essa sensação assim de que eu não podia ir embora sem presentear isso de volta. Tinha essa sensação de agradecimento, de gratidão mesmo. Mas eu ia ter que ir embora, não teve jeito. Mas só que quando eu cheguei lá um grupo de estudantes, três estudantes da faculdade tinham se envolvido nesse trabalho, nessa campanha de restauração do Museu de Pesca, que estava fechado, tombado mesmo. Me chamaram porque sabiam desse projeto que eu já fazia desde a Federação Nacional dos Estudantes de Arquitetura e Urbanismo do Brasil (Fenea). De participação, né, de estudantes e de se envolver com a comunidade, projetar com eles, trabalhar lá dentro da favela mesmo. Eles já sabiam desse trabalho e me chamaram pra coordenar o grupo, que eles não queriam chamar um professor que o professor ia fazer eles de “escraviários”, né? Quer dizer, o professor ia ter um projeto, eles iam ficar desenhando e a fama ia ficar pro professor. E eu desde a faculdade defendia que todo mundo é capaz de fazer, né? Então, que todo mundo tem que ser autor disso, não só o professor. Eles adoraram essa idéia e falaram: “Vem trabalhar com a gente.” E foi ótimo, que o Museu de Pesca é o maior museu da cidade, é o mais querido e “tava” fechado, ruindo e ia se deteriorar mesmo. Então, achei que aquilo é um tamanho de presente, falei: “Nossa, se a gente reabre esse museu…” Que era uma utopia, né, reabrir. Era um sonho de jovens universitários. Mas se a gente reabre o museu, eu falei assim: “Eu posso ir embora tranqüilo do Brasil que Santos está presenteado com o museu, né?” E virou um gigante assim. Que eu falei pra eles: “Tudo bem eu fico.” “Mas eu tô indo pra Alemanha, se é pra ficar aqui eu posso perder a bolsa.” “Mas pra ficar aqui, a gente vai ter que garantir;” “Só vou ficar se vocês garantir que a gente só vai parar quando o museu tiver reaberto.” Que eu “tava” até pronto pra não ficar reaberto, mas eu queria puxar o máximo deles, né? “Então, vocês topam?” Aí eles ficaram com medo assim: “Não, mas vamos, vamos” Porque eles queriam também, né? Então, além de ser reaberto ele tem que ser um museu que não pode dever nada pra nenhum museu do mundo assim. Eu quero que se um americano vier aqui, um canadense vier aqui ele fale: “Nossa, que espetáculo” Então: “Alguém de Paris vai ter que falar que é maravilhoso” “Vocês topam?” Topam. E terceira condição, falei: “Ó, tem que ser cooperativa.” “Tem que ser uma produção coletiva, tem que ser todos nós participando e tem que ser a cidade inteira participando, sonhando junto com a gente.” “A gente vai criar estratégia pra isso.” “Ah, como é que faz?” “Não sei, a gente vai inventar.” E foi ótimo porque a gente conseguiu tudo. Então tinha essa coisa assim: aquele museu que você viu é um museu; a gente faz sempre três projetos. Então é bem pé no chão, assim que ninguém vai poder reclamar, vai ter que fazer, porque pediram projeto pra gente. Está fazendo de graça. E iam ter que fazer. O segundo é um projeto que o arquiteto faz que sempre “chuta”, é um projeto que sempre dá um “chutinho”; cê pede, cê tem um orçamento x, ele vai um pouquinho no x e meio. “Vai ficar ali, no faça?” E o terceiro era um utópico. Que era assim pro estudante soltar a imaginação: “Olha, se não tivesse problema de dinheiro.” “Se você tivesse em Paris, cultura é prioridade.” ”Que museu que você faria?” “Se você tivesse em Tóquio, tecnologia não tem problema.” “Qual museu que você faria?” E eles projetaram isso, essas três hipóteses de projeto, né? Só que todo mundo quando viu o projeto utópico, que não “tava” escrito utópico, adorou o projeto utópico.

P/1 – Que é o que?

R – Que é o que está lá agora. (RISOS) A gente ficou quieto, falei: “Ninguém;” “Fecha a boca.” Eles falaram: “Ah, mas…” Na ora de mostrar o projeto utópico eles não queriam mostrar, né? Que eles fizeram o utópico, viajaram, fizeram uma coisa flutuando, a baleia flutuando, aquela coisa assim com dínamos, né? E eu falei: “Ah, você vai fazer…” Depois que eles fizeram o utópico, que era só a brincadeira, um exercício de criatividade, eu falei: “Legal, agora vocês vão pegar e viabilizar todos esses três.” “Com um pé no chão, o outro.” “Ah, mas você falou que era pra sonhar.” “É, mas sonho também tem que ter base, né?” Então eles começaram a viabilizar mesmo, começaram a pesquisar coisa. Então, pastilha. Como é que ia fazer o esqueleto da baleia ficar flutuando? Então, pastilhas, já tem tecnologia pra isso, né? Não pra fazer o esqueleto ficar viajando. Mas, fomos buscar isso e é legal a criatividade vai indo embora. No final eles fizeram ela pendurada, voando, mas com fios invisíveis, né? Mas, vai viabilizar isso no real. E quando eles foram apresentar o projeto, “tava” viabilizado. E as pessoas viram aquilo, não “tava” escrito utópico, acharam que era aquele e adoraram. Então, a Petrobrás viu na televisão, foi lá e deu o dinheiro, patrocinou. Então, o Governo do Estado viu, começou o Governo do Estado, né? E era bonito mesmo, porque a gente rasgou o chão, o piso do chão. Então é uma coisa que não tem no Brasil. Você rasgou, então você vê os dois andares, você vê a baleia do piso debaixo, parece que tem um, né? Então, tem algumas novidades assim que a gente sonhou. E os americanos chegam lá e ficam assim…

P/1 – E aquela área que você volta a ser criança. Que você desce, passa numa ponte, sobe, entra num quarto de pirata…

R – Ela é lúdica. Sim. Aquilo veio, foi muito curioso Porque a gente combinou que museu tinha que ser inclusivo, né? Então, acessível. Então, mais que acessível ele é inclusivo. Então, não é só ter rampa pra deficiente, né? Como é que o deficiente vai ter prazer dentro do museu? Qual é o prazer que eu tenho no museu? É esse. Então, como é que o deficiente vai ter prazer nisso? Como é que o idoso vai ter prazer nisso? O quê “que” é prazer pra uma criança no museu? Então tinha que ter pra isso. Tinha que ter o prazer, do saber, do conhecer, do explorar, né? Então, a gente ia discutindo muito isso, tinha discussões fantásticas assim. Mas isso também demora muito tempo. Mas, basicamente veio quando de uma discussão que a gente fez sobre idosos. – Eu lembro – direitinho dessa roda, a gente “tava” sentado assim, no museu em ruínas mesmo, a gente sentado no meio. E aí o pessoal falou assim: “Mas, o idoso também;” Uma mulher falou assim: “Mas, idoso não quer fazer nada.” “Não sai.” “Eu tenho meus avós, que moram com a gente, quer sair de casa, não querem fazer nada” E a gente começou a discutir isso. Eu falei assim: “Está, eles não vão no cinema?” Então, vamos discutir esse ponto: “Vocês vão muito no shopping?” “Vamo” “Que que tem no shopping que teu avô adoraria?” “Tem lojas de roupa pra idosos no shopping?” Aí começavam: “Ahn.” “Que que tem lá que ele se divertiria muito?” “Não tem”. Cinema: “Quais são os filmes que estão em cartaz?” “Vamo falar dos filmes que;” Aí começava; “Quais são os filmes que teu vô gosta?” “Ah, meu vô gosta de filmes antigos assim.” Então, a rua. Como é que é andar na rua, né? Então, a gente começava entender que a cidade não é acessível pra idoso. Que não dá pra sair mesmo. Não tem prazer pra ele, não tem filme pra ele, não tem loja pra ele, não tem bar pra ele. Só se ele for mais jovem, mais descolado, não tem pros interesses que ele tem. Então, ele vai ficar em casa. Pega um “digital vídeo disc” (dvd) e fica em casa. Porque não tem prazer lá fora. O mundo não é feito pra ele. Então, eles começaram a re-significar isso. A partir do idoso. Como é pra criança? Então, o museu as crianças não podem mexer. A criança quer aprender mexendo. Então não pode tocar. Então as coisas são estáticas. Então está lá o peixe, fora de contexto, numa “prateleirazinha”. Então, a gente falou assim: “Então, agora com esse estado, vamos fazer uma ala…” Eles entenderam que o mais bonito no museu é a paisagem lá fora, né? Então, têm um mar lá fora, os navios entrando. Isso em todo mundo fica aquela emoção, né? Então, a imagem lá fora e as coisas, os objetos que as crianças poderiam pegar e não podem pegar. O guará não deixa mexer nem no móvel. Então a criança ia chegar lá e ia ficar todo o tempo: Pi, Pi. E todo mundo foi criança e passou por isso. Então a gente resolveu, a gente falou assim: “Vamos fazer uma ala prás crianças.” Então, as crianças mandam e os adultos vão ter que se adaptar. Porque a gente percebeu que não podia mudar o museu inteiro. Não podia abrir tudo e deixar. Porque assim: elas iam quebrar. Então, como cuidar do museu e como cuidar das crianças? E aí, a gente lembrou que tinha aquela ala lá embaixo, que a gente sempre teve o sonho de fazer que nem o Louvre, né? A gente ficava: “Ah, vai ter…” Quando a gente via que tem as arcadas lá embaixo, antigas, né? Falava: “Vamo cavar isso aqui, fazer mais um andar que nem no Louvre.” “Então, vamo aumentar o museu.” E não tinha jeito, porque você cava, a 80 centímetros tem água em Santos, é o mar, né? (RISOS) então, a gente ficou assim: “Ah, não vai poder ter o Louvre aqui.” E aí, um menino do primeiro ano falou isso assim: “Vamo fazer prás crianças.” Porque é baixinho assim, né? Então, a criança pode andar como se fosse adulto lá. E o adulto, claro, vai ter que se adaptar. Vamos descontar o que a gente faz com as crianças aqui, né? (RISOS) Só que a gente falou assim: “Então, beleza.” “Só que o adulto vai ter que entrar.” “Não adianta fazer baixinho que o adulto não vai entrar.“ “Como é que a gente vai fazer pro adulto entrar?” “Ah, fazer uma coisa tão maravilhosa, tão espetacular que ele vai querer entrar.” (RISOS) E eles entram. Porque assim: é tão espetacular que as crianças baixas assim; você viu isso Era fim-de-semana?

P/1 – Eu gritei tanto

R – Sempre. As crianças descem, primeiro descem primeiro pra falar: “Vai lá, vai lá.” o Pai não vai. A criança quando ela começa a ver o que tem lá dentro. “Pai, pai, vem.” “Pai, pai.” E o avô. Elas enchem tanto o saco que o avô desce desesperado, assim tremendo. E quando ele chega lá embaixo; a gente falou assim: “Quando ele chegar aqui, ele vai ter que adorar” “Ele vai querer dar a volta.” Porque é um túnel, né?

P/1 – Não tem como sair, né?

R – Não tem como sair. Ele entra e é maravilhoso assim, “vai” vendo aquelas tocas, os peixes assim. Então, a gente fez assim; bom, cê viu as imagens. Assim, fez perfeito mesmo e pra ser um lugar de sonho. E muito, a gente fez de propósito, por conta duma história que a gente que os índios quando falam com as crianças, agacham, né? Pra falar da mesma altura. Então, tinha muitas histórias que foram surgindo nas rodas de discussão com os alunos, que a gente falou assim: “Então, se a gente conseguir fazer o vô entrar aqui dentro…” A gente pensou muito assim: O que “que” museu pode contribuir pra transformar uma realidade contemporânea, que a gente não está vendo mais? Qual o papel do museu nessa história? Então, tinha; a crise é: o pai não fica mais em casa, não brinca com a criança. Meu pai não tem tempo de brincar de casinha comigo. Então, as gerações estão mudando. Então, a gente falou assim: “Pelo menos no museu vai ter essa experiência.” Então, se o pai se agachar; a gente: “Não, essa criança vai adorar de ver o pai engatinhando.” E é o que aconteceu. Assim: como é que a Arquitetura pode fazer mais do que só mostrar coisas belas, né? Então, as crianças ficam; agarram os pais, a criança vira líder. “Vem cá, vem ver.” “Ó, tem isso aqui também.” “Isso aqui é o peixe…” E o pai vai seguindo a criança: “Onde?” “Onde?” Porque ela que já sabe. Ela está na frente dele, né? Já sabe todo, vê tudo. E o pai fica, vira criança, né? Então, pelo menos um espaço; e tem vários depoimentos de pais que conta o pessoal do museu, amigos meus que foram e nem sabiam que foi a gente que fez, conta pra gente: “Olha, pra mim foi uma experiência espetacular, porque eu fiquei engatinhando com meu filho, sabe?” “Lembrei do meu pai, como é que é brincar de casinha.” “Recuperei isso.” Então, isso mexeu com as pessoas. E teve muito nossa aprendizagem do poder que a Arquitetura tem de transformar uma realidade, sabe? De retomar uma cultura, sonho, um pouquinho disso.

P/1 – A gente vai trocar mais idéias sobre isso.

R – Está bom.

P/1 – Mas eu queria que você continuasse nessa linha assim do poder que a Arquitetura tem de transformar a realidade e falasse do Guerreiro sem Armas. Que é maravilhoso.

R – Vamos fazer uma conexão direta, vamos pular três anos aí. Passar rápido durante três anos.

P/1 – Infelizmente.

R – Não, a experiência do museu assim, essa coisa louca que a gente conseguiu fazer de envolver a cidade, a cidade ir lá e dar opinião no projeto, e torcer pra gente. A faculdade inteira torcia pra gente. Então, foi uma comoção assim, né? Local assim, regional. A gente levava essa experiência pros Encontros Nacionais de Estudantes de Arquitetura, regionais e nacionais. Estadual, nacional e latino-americano. Então, a gente fotografava o processo inteiro, levava matéria de jornal, fazia uns “slides”. E um dos compromissos da gente também era compartilhar tudo que a gente aprendia, não guardar nada pra gente. Então nos encontros a gente mostrava isso e virou uma comoção nacional também. Porque não tinha estudantes que fazia; muitos estudantes faziam projetos pra comunidade, pra Prefeitura e nunca acontecia nada. Então, você ficava sempre fazendo um monte de projeto e jogando fora. Quando a gente começou a fazer uma coisa que deu certo; então, uma ano a gente “tava” com a idéia, o pessoal achava maravilhoso: “Ah, que lindo, é só ter idéia.” “Ah, o museu está deixando vocês lá?” “Ah, que lindo também.” Então segundo ano mostrava; seis meses mostrava isso. Nove meses mostrava assim: “A Prefeitura aprovou, o Governo do Estado aprovou isso.“ “A Petrobrás deu dinheiro.” Aí que acreditou. “Mas, como, era verdade?” Então, virou uma comoção nacional. Vários grupos surgindo e fazendo isso também no Brasil inteiro. Tentando fazer coisas, projetos reais e botando pra funcionar. Até que veio um grupo da América Latina, tem um Conselho Latino-Americano de Estudantes de Arquitetura, que veio pro Brasil, já “tava” famoso o projeto, e fizeram uma reunião em São Paulo e desceram todo mundo pra santos. Umas 15 pessoas pra ver o museu. E todo mundo que chegava não ficava só vendo o museu. Que aí já “tava” em obras, “tava” tudo acontecendo, “tava” o projeto e a gente lá no meio acompanhando a obra. E a gente fazia eles participarem com a gente, fazer um projeto junto com a gente, coletivamente. Que não é muito comum pra arquiteto. Eles se apaixonaram pela idéia e saíram de lá sonhando que todas as universidades deviam ser assim. Então, eles ficavam assim: “Ai, mas a gente devia fazer uma pressão, movimento, né, latino-americano prás universidades fazerem assim essa coisa de fazer toda a parte de aprendizagem na cidade.” “Então, em quanto a gente aprende vai fazendo projetos: um museu, uma escola, uma favela.” Então, foram sonhando isso, foram caminhando pela praia e sonharam primeiro com uma universidade assim; que a gente devia fazer um movimento, a gente mesmo pra construir isso. Depois descobriram que essa universidade ia demorar muito tempo, que eles iam; aí pensaram numa faculdade de arquitetura. Aí, a faculdade de arquitetura também, começaram a planejar o currículo, em tudo ficavam super felizes como é que ia ser. Mas gostaram tanto do que eles criaram. E a gente ficou trabalhando no museu, eles foram pro apartamento que a gente emprestou pra eles, né? Aí, ficaram tão felizes com a faculdade que eles criaram, que eles faziam: “Não quero criar essa faculdade, vai demorar dez anos.” “Eu quero estudar nessa faculdade” Então, falei: “Vamo criar um curso então que possa fazer isso.” “Aí cria o curso e faz o curso.” E aí, no final eles falaram assim: “Não, a gente quer viver isso agora.” Então, eles fizeram um jantar latino-americano, convidaram a gente pra jantar e falaram pra gente: “Olha, a gente quer que vocês façam um curso pra gente de um mês, de férias pra repassar essa metodologia que vocês estão vivendo.” “A gente quer aprender isso.” Então eles saíram de uma universidade e foram pra um curso pra eles poderem viver isso, né? Que eles já começaram a desenhar. Aí surgiu a história de Guerreiros; a gente topou de fazer isso, de repassar essa metodologia em um mês. Então, a gente tinha seis meses pra organizar, conseguir dinheiro, conseguir local assim. Mas, a gente adorava desafios E fez o primeiro. Foi em 1999. Só que a gente já tinha um plano de fazer, a gente tinha combinado que depois que saísse do museu; pra fazer o museu a gente acabou pesquisando muitas culturas caiçaras. Porque a gente queria fazer um presente, né? O museu; a maior parte do acervo que tem no museu foi doado por pescadores, só que não tem o nome deles lá. O que é doado por doutores: “Ah, o oceanógrafo tal.” “Doado pelo doutor, não sei o quê lá.” Mas pescador é desconhecido, né? Então assim, não tinha homenagem ao cara. Por que não tem o nome do seu Francisco? Então a gente foi pesquisar isso e resolveu fazer a principal sala, a sala central do museu a gente fez em homenagem ao caiçara. E foi visitar muitos caiçaras, e eles têm uma condição terrível em São Paulo assim, no Brasil inteiro, mas são miseráveis mesmo Venderam as terras muito baratas pra fazer grandes condomínios e tão passando mal. Não estão pescando mais. A gente combinou que ia fazer uma coisa social. Então, a gente juntou a Escola de Guerreiros com o social. Invés de fazer um museu, já trabalhava com comunidades, em favelas em comunidades caiçaras. E via como é que esses Guerreiros sem Armas pode ajudar a mudar o mundo. Foi aí que surgiu a Escola de Guerreiros sem Armas.

P/1 – Mas qual é a missão do Guerreiros sem Armas?

R – Os Guerreiros sem Armas é uma tradição txucarramãe, né? Foi Kaká Werá, que também foi lá da Ashoka, que apresentou esse termo pra gente a primeira vez. A gente adorou. Que são pessoas que vão mudar o mundo; são guerreiros, que têm essa qualidade de guerreiro, que não desiste, obstinados. São estrategistas, né, e conseguem o que eles querem, mas sem usar de violência. Então, essa idéia de jovens que vão mudar o mundo com o coração. Então, a formação deles; são jovens que sejam capazes de; hoje em dia é mais fácil explicar. Na época a gente não tinha essa clareza. Então, vamos fazer essa ponte, né? A gente tinha vontade de que mais pessoas; assim como o museu a gente trabalhava muito feliz e via muito desafio e cada vez mais gente chegava porque tinha essa qualidade de alegria. Percebeu que tinha alguma qualidade aí de ser empolgante. Ser um desafio empolgante. Não uma missão: Vamos salvar o museu, né? Então, a gente já buscava essa qualidade. A gente percebeu assim que iriam pessoas capazes com essa alegria de trazer mais gente pra transformar a realidade. Que é o que a gente fez no museu. Então, todo mundo queria; a gente não precisava chamar Todo mundo queria vir porque; “Ah, eu quero ajudar.” “Eu tenho isso aqui.” “Eu tenho tal contato.” Todo mundo que queria ajudar a gente, não precisava pedir, né? Então, como fazer isso pra mudar o mundo inteiro? Então, os Guerreiros sem Armas seriam essas pessoas. E a gente percebeu que uma das questões era, principalmente, a gente tem uma apatia, uma doença contemporânea que é quase uma; é uma apatia, mas é mais uma paralisia. Tipo aquela do tigre, sabe? Que é assim: é tanta notícia ruim, é tanta idéia de que eu não sou capaz, é tão maior do que eu a fome na África. Que eu vejo, eu me sensibilizo, e depois eu vou guardando assim, selando esse sentimento que me impulsiona a fazer alguma coisa. Você vê aquilo, fala: “Quero fazer alguma coisa.” “Quero recolher comida.” Mas, se; Aí, você fala assim: “Mas, se eu mando comida, a comida apodrece quando chega neles.” Tem essas notícias tão ruins, que você não faz nada “Ah, o Congresso brasileiro votou triplicar o salário deles.” você fica injuriado, mas: “Ah, que que eu posso fazer?” então, você apaga isso, né, qualquer um de nós apaga isso e volta à vida cotidiana. “Então, amanhã vou trabalhar.” “Ah, agora tenho que fazer comida.” Você se ocupa, né? E não deixa que essa coisa natural, essa vida tomar forma. Porque você acha que vai ser impossível, você não vai conseguir mudar. Então, a gente detectou que tinha essa depressão social, cultural generalizada na sociedade que fazia com que a gente não “reaja”. Então, Guerreiro sem Arma é o cara que vai transformar isso. Vai trazer uma esperança assim, é meio guerreiro do arco-íris também, sabe? Então é o cara que ele fala assim: “Olha, é possível.” “Vale a pena.” E vale a pena sonhar, sabe, utopia mesmo. Não qualquer projeto, a gente não vai dar comida pra África, a gente vai mudar a África; verdejar, novamente. As pessoas vão dançar ciranda, vão tocar tambores e vão ser muito felizes. Então, o cara que vai com esse sonho, né? Então, como é que a gente tinha que preparar esse cara? Por isso que entra também muito isso da pedagogia indígena. Como é que em um mês, a gente faz esse cara voltar a acreditar, ele mesmo? Por isso que o curso é vivencial. Então, você não fala isso em sala de aula, você não faz “ele” com textos e poesia, ele tem que ver que isso é possível E quando a pessoa vê, é como Santos, Brasil inteiro, quando viram que a gente foi lá e fez e a Petrobrás patrocinou; milagre acontece “Ah, eu também quero” “Quero fazer um museu também.” Então, o Guerreiro sem Armas é esse cara que traz alegria. Ele traz, ele dissolve essa apatia, a partir de mostrar que isso é possível, de te convidar. E têm várias estratégias pra isso, né? Uma dele aprender a tocar teu sonho, descobrir o que é que vocês fazem. Então, vocês sentados, só de ouvir a história da pessoa; a pessoa começa a contar de onde ela veio, né, de como é que era a infância ela começa a brilhar de novo. Aquela pessoa que está murcha, depressiva, está apática, está paralisada na favela. Que está; como se fala assim? Ela está hibernando pra poder sobreviver. Porque se ela for pensar em quão horroroso, ela se mata. Então, você hiberna. Você desliga a maior parte da vida em você. Vive 20%. E aí você consegue continuar vivendo. Vai trabalhar, três horas de ônibus, volta, o filho não tem alimentação. Você consegue sobreviver, né? Agora, se você lembrar que você podia ser feliz, “você” dói demais. Então, você, né? Então, esse cara vai lá e chacoalha isso de novo. “Nós vamos ser feliz agora.” Mas não só dando a notícia: “Você pode ser feliz.” Às vezes, você vai lá e fala: “Não, você pode ser feliz, pode ser feliz.” Mas a pessoa não vai, porque dói. Não é só falar assim: “Vamos lá, reage Reage.” Mas já dá aqui; então, a gente vai lá e constrói mesmo. Constrói a praça, constrói creche. E tem que ser rápido pra ela acreditar, pra ela ter vontade de sair da toca, sabe? Ela olha assim: “Mas, como?” “Sem dinheiro.” “Mas ele está fazendo mesmo?” Aí você convida assim, convida só uma vez. “Ah, vem aí, se você quiser.” Mas não fica assim: “Ai, vem, vem” “Vem se quiser.” E já sai andando. Então, a pessoa fica meio assim: “Pêra aí, se eu não for vou perder alguma coisa, né?” “Não está me enchendo o saco pra eu ir.” Então, ela não vai muito Ela sai um pouquinho, ela vai lá olhar assim o que está rolando. Mas ela vê, e esse pessoal chegando, vai sendo feliz. A gente faz ciranda, e anda, pula. Então, esse contexto da alegria é essencial, sabe, essa coisa, as festas. É muito inspirado nas culturas tradicionais, sabe? Sabe o mutirão? Aquela família não consegue arar a terra dela inteira a tempo de plantar tudo e colher. Então, o que eles fazem? Compadres, caiçaras, eles convidam um monte de famílias e todo mundo vem no fim-de-semana e faz um milagre no final de semana. Ara a terra inteira, com enxada. E fazem isso cantando. Então, os nossos caiçaras fazem isso. Os africanos fazem isso. Os asiáticos fazem. Fazem isso cantando e dançando. Então, não é trabalho é uma brincadeira. Enquanto eles estão fazendo, cantando e dançando, a mulher está lá esfolando o porco, limpando, fazendo a gordura. Aí a gordura é dividida pelas famílias todas. Então você tem um presente; você vai dar um presente e ganha um presente também. Um dia maravilhoso com os compadres, refaz os laços. Que eles moram muito longe um do outro. Então, conta as fofocas, conta as histórias, como é que está. As mulheres fazem aquela terapia entre elas na cozinha, no fogão, fazendo farinha. Então, é toda uma celebração de estar junto que uma grande festa. Não é um trabalho de arar a terra do compadre. É uma grande festa, que eu dou e recebo. Então, a gente começou a se inspirar nisso também. Como é que esse trabalho de mudar o mundo, de mudar uma situação que está terrível, uma terra seca, destruída, ser o motivo de uma festa pra gente.

P/1 – Edgard, vocês estão fazendo mais intervenções urbanas, pelo que eu entendi. Ou estou errada?

R – A gente faz qualquer lugar.

P/1 – Qualquer?

R – Por isso que a gente chama de Oásis. Onde tem deserto; podem ser desertos urbanos. Onde tiver a gente vai. Já fez no meio da Juréia, né? Então, assim onde você precisa; óbvio que a gente foca muito o urbano porque é onde a gente está e é um grande impacto e tem bastante gente também. Mas a idéia é assim, a metodologia ela é pronta pra se espalhar pra qualquer lugar.

P/1 – Vamos tangibilizar um pouco. Eu queria que você desse o exemplo do vídeo, que eu achei tão lindo ontem. Você contasse um pouco pra gente essa experiência daquela área de Paquetá, né?

R – Paquetá? Contar de lá?

P/1 – É. Eu achei tão lindo. Como começou?

R – Bom, Paquetá começou; a comunidade de Paquetá que são cortiços, né? São assim, tipo, você sabe, são cortiços.

P/1 – No centro.

R – São no centro histórico de Santos. São casarões antigos, têm em São Paulo também, têm em vários lugares do Brasil. que eram antigas casas de famílias milionárias, mas que abandonaram, foram mudar pra praia…

P/1 – Do auge do café.

R – Do auge do café. Aí foram morar em prédios, beira da praia, aquela moda européia. E deixaram as casas lá. começou assim, por conta do porto, sabe, uma zona de prostituição. Que até conviviam antes, mas aí começou a ficar uma coisa mais degradada, vir crime. Começou a ser um lugar não muito quisto. E eles foram se afastando. Aí deteriorou de vez, né? Ficou só comércio, essas coisas. E aí começaram a virem muitas famílias, que as pessoas sobre-alugam a casa. Então, ficou uma família inteira num quarto, né? Então, 20 famílias numa casa só. Então, eram muitos cômodos. Então, 20 famílias numa casa só, pra dois banheiros. Vinte famílias e dois banheiros, se virem. Então, já dá pra imaginar que condições que fica. Já viram em televisão e filme onde é que a coisa chega assim, que grau de insalubridade tem. E essa é uma comunidade que muita gente tentou trabalhar com eles. A Prefeitura tentou trabalhar com eles, o Serviço Brasileiro de Apoio às Micro e Pequenas Empresas (Sebrae) tentou trabalhar com eles, o Serviço Nacional de Aprendizagem Comercial (Senac) também. E ninguém conseguia. Aí fica aquela fama: eles são muito arredios, não querem saber de nada, não querem mudar de vida, eles são muito porcos, são muito sujos, né? E a gente nunca tinha trabalhado; trabalhava muito com favelas, com comunidades caiçaras assim. Com lugares mais à margem da cidade, “onde” ninguém vai. A gente vai, sempre procura lugares “onde” ninguém vai. E essa comunidade veio procurar a gente. Que a associação deles, né, duas pessoas, tinham acabado de assumir a associação. Eles derrubaram o antigo líder que tinha roubado muito a associação deles. Foi uma associação feita pra habitação, pra conseguir construir casas com a Companhia do Desenvolvimento Habitacional e Urbano (CDHU), com o Governo do Estado. Que nunca aconteciam. Então, foram pedir ajuda pra gente pra se organizar. Porque alguém da Prefeitura falou pra eles: “Olha, vai procurar o pessoal do Elos que eles são ótimos, eles são super bons, vai trabalhar com vocês.” Então, a Prefeitura mesmo não trabalhou com eles, empurrou a gente. Eles vieram trabalhar com a gente. E, logo na primeira conversa, eles já enlouqueceram. Porque ninguém nunca perguntou pra eles, o quê eles queriam. E a gente, logo de cara perguntou pra eles: “Quê é que vocês querem?” Daí todo mundo já chega a uma solução, né? Então, eles já brilharam o olho, já ficaram assim, reagiram estranho assim. A gente ficou meio assim. E eles começaram a contar as histórias, ficaram assim super empolgados, ficaram apaixonados. Mas, a gente ia acabado de combinar entre nós no Elos que a gente não ia pegar mais nenhuma comunidade. Estávamos com oito na época. E nós éramos em cinco pessoas, a gente não dava conta, era muito trabalho, muita coisa. E a gente contou pra eles: “Infelizmente, não vai dar.” Eles ficaram assim desolados. Mas eles saíram do escritório, diz que no elevador eles falaram assim: “Eles vão trabalhar com a gente.” “Sim ou sim.” “Não vamos deixar escapar de jeito nenhum.” “São eles.” “Eu sinto que são eles.” A líder falava isso, né? E aí voltaram do elevador, bateram na porta, falaram assim: “Mas, só uma coisa.” “Se a gente precisar de uma ajudazinha de vocês, porque, às vezes…” Criaram o truque de manter o contato. Quer dizer, já foram empreendedores desde o começo. Já eram empreendedores. E criaram esse truque sem a gente saber. Então, combinaram entre eles, que toda semana eles iam ligar pra fazer qualquer desculpa. “Ah, a gente tem que fazer um ofício, como é que faz?” Pra manter contato, né? E deu certo. Porque, tipo uns dois meses depois o Serviço Social do Comércio (Sesc-Santos), convidou a gente pra organizar uma conferência de ação comunitária. Tinha uma grande conferência em Santos de várias áreas, segmentaria, criança, mulher e tinha esse tema que eles pediram pra gente organizar. E a gente falou: “Não vamos falar, sobre essa comunidade, vamos fazer.” Então, foi a desculpa que a gente teve pra fazer um trabalho com eles. Chamamos eles de novo, então a gente falou: “Vamos fazer então.” Criamos esse jogo, foi a primeira experiência do Oásis, né? Então, fala: “A gente não vai trabalhar com vocês um mês, mas vai ter um fim-de-semana.” “Nesse um fim-de-semana a gente vai dar um “start” comunitário, pra vocês despertarem, depois vocês tocam.” “Está bom?” “Está.” E a gente criou esse jogo de dois dias. Então, convidou gente da cidade inteira, mais a comunidade inteira. Pedimos pra comunidade fazer todo o levantamento de recursos que eles tinham. “Ah, mas não temos dinheiro.” “O quê vocês tiverem.” “Tem plantinha da dona Joana?” “Ela vai doar três plantinhas?” “Essa plantinha.” “Tem pedra não sei aonde?” “Tem paralelepípedo solto?” “Junta o que vocês têm.” Primeiro, fizemos eles sonharem, né? “Quais são os sonhos de vocês?” “Que é que é prioridade?” Aí começaram a falar que era lugar de lazer, um futuro melhor pras crianças. E falamos: “Que é que seria isso materializado?” Aí começaram a sonhar várias coisas. “Ah, uma praça, uma praça.” Então: “O que é que tem de recursos aqui?” tinha um terreno vazio que tinha sido uma praça e “tava”; jogavam lixo. Era um grande terreno baldio, né?

P/1 – Está cheio de lixo

R – Cheio de lixo. Que era maravilhoso pra ser uma praça. Então, se você olhasse por trás do lixo, era uma praça. Então, eles não viam aquilo como recurso, viam como um horror. Mas, a gente falou: “Olha, tem isso aqui, ó o espaço que tem.” “Isso podia ser uma praça.” “Ah, mas esse lixo.” “O espaço está aí.” Então, eles começaram a entender que o sonho podia virar realidade. Chamamos a pessoa da cidade inteira, criamos o jogo, que é super divertido assim. As pessoas projetam mesmo as maquetes; eles conseguiram um monte de palmeiras, que eles tinham o sonho de ter palmeiras. Projeta tudo isso e no dia seguinte, ninguém sabe disso, só a comunidade, a gente convida todo mundo pra ir construir. E aí foi aquela farra; eu até tenho essa; mas – eu tenho – essas imagens. E o pessoal constrói. Tem um dia pra construir. Tem que ter essa qualidade de milagre mesmo. Prás pessoas pararem e falarem assim: “Mas gente, eu tô aqui há 30 anos esperando um espaço de lazer.” “Por quê eu não fiz até hoje?” A idéia é chegar no final, eles falarem: “A madeira tava aqui, a pedra sempre teve aqui, o resto teve aqui, o espaço sempre teve aqui.” “Por que eu não fiz?” “Se a mão está aqui?” Não precisava nem ter vindo o pessoal da cidade inteira. Que no final das contas quem constrói mesmo é a comunidade, quem constrói melhor. Então, a experiência foi maravilhosa. E essa que você viu no vídeo, na verdade, já foi a Escola de Guerreiros sem Armas. Três anos depois dessa experiência. A gente tem um outro lugar que é muito mais complicado, que é aquele que você viu a cena. Que é uma grande fábrica antiga. Que é um lugar que ele ficou abandonado – acho que – 11 anos, uma coisa assim, nove, 11 anos. E é um lixão. Então, lixo hospitalar assim. – Não sei – como foi tanto lixo lá pra dentro assim, uma altura de uns 50 centímetros de lixo numa área de 80 metros por 50 metros. É muita coisa. E aí, o pessoal usava pra acerto de contas. Morreu muita gente lá dentro. O pessoal do tráfico usava pra acerto de contas. Então, morador de rua, mora ali dentro. Então, a polícia toda semana tem um dia marcado que vai lá e bate neles. Pra manter a disciplina, o respeito. Então, um lugar que era assim, que era de dor, muita dor. E na Escola de Guerreiros sem Armas, a gente foi transformar essa realidade. Em frente ao cemitério, tem um monte de questões bem complicadas. Mas, a gente usou isso pra trabalhar com os Guerreiros como um desafio de, a gente usou pra eles assim: Qual é o tipo de desafio que você vai ter, se você quiser de fato mudar o mundo em trevas? Porque a comunidade chama esse lugar; uma comunidade de cortiço que já é trevas, chama esse lugar de Trevas, pra eles, né? Então, a gente usou esse exercício na Escola de Guerreiros, agora com jovens do mundo inteiro, pra treinar, sabe? Se você for pra África que realidade você vai pegar? A parte ruim da África. Que tipo de qualidade, de energia, de habilidade você vai ter que ter pra lidar com isso? Que ali eles exercitaram isso. Foi forte Foi. Usaram muitos talentos. Então, o pessoal da África cantou, por exemplo, músicas sagradas pra limpar o espaço.

P/1 – Isso é que eu ia falar: agregar pessoas de lugares tão diferentes…

R – É isso é o nosso sonho

P/1 – Por uma causa comum.

R – A gente acredita; no Elos, nós somos em cinco, né? O Rodrigo, a Mariana, Natasha; eu e o Alexandre, os fundadores. O Alexandre saiu, agora somos oito. Tem mais a Amy, a Val, a Taís. Amy, a Val e a Taís. Então, o grupo cresceu um pouco mais. Mas, a gente sonha assim; o Guerreiros sem Armas é um sonho nosso e de jovens que vão mudar o mundo mesmo. O mundo como está hoje, a gente quer mudar Tem um projeto claro pra isso. E a nossa ação disso é construindo oásis. Então, como foi essa praça e esse centro cultural que muda toda a dinâmica da comunidade. Eles começam a mudar, sai da espiral de dor, de miséria e começa a ser uma espiral de vida. Eles começam a querer sonhar coisas: “Vamos fazer capoeira, vamo fazer judô prás crianças, vamos fazer festa.” Eles mudam a energia mesmo do local, essa apatia. A gente quer fazer isso no mundo inteiro. E passar; a gente sabe que não consegue construir a realidade inteira no mundo inteiro, não dá pra fazer tudo isso. Mas, a gente pode passar e dar um sopro. E que o verde começa a brotar, entendeu? Que as pessoas já têm isso, não precisa levar isso prás pessoas, está dentro da gente A gente costuma falar isso: “É como se a gente fosse chama.” Mas muitos de nós está uma brasa, apagou a chama, e outros estão carvão. Mas, mesmo esse carvão tem um pontinho vermelho lá dentro que a gente não está vendo. Então, a gente quer chegar lá e soprar. Sabe, quando você fica soprando, né? Que nem fazer uma fogueira, você sopra. A gente não precisa mexer, sabe, transformar a pessoa numa brasa. A pessoa já é, potencial da brasa Ela não está. Então, a gente precisa fazer uma coisa muito simples que é soprar. Então, soprar com a nossa alegria, com a nossa dança, com a nossa iniciativa. E vai. E as pessoas vão se incendiando. “Ai também quero, também quero.” É um pouquinho dessa forma. Você falou de gente tão distante. A gente percebe assim: tem uma estratégia por trás disso. Se é que a gente vai mudar o mundo, vai ter uns desafios muito grandes. Aquilo que o ser humano sempre teve. Como é que vai ser quando a gente chocar com alguém que é muito diferente da gente? Então, Palestina e Israel? Como é com alguém de uma religião diferente? Uma língua diferente? Costumes; valores diferentes? Então, esse Guerreiro sem Armas também tem que aprender a lidar com isso. Então, como é que é que eu vou criar um jeito? Vem gente do mundo inteiro: paquistaneses, africanos…

P/1 – Continuando, ontem você falou uma coisa super interessante e deu pra perceber muito no vídeo. Tem uma alegria das pessoas, um envolvimento.

R – Tem. É.

P/1 – Um prazer.

R – Tem. A energia; a gente foi sacando com o tempo que, primeiro uma: a gente era muito novo, não somos tão novos agora, mas a gente era muito novo. E não dava; acho que o planeta – a nosso ver – ou a vida do Homem no planeta não tinha tanto tempo. Pra gente ensinar toda uma nova cultura. Ensinar as pessoas a começarem a amar umas às outras. Ensinar elas que tem que cuidar. São gerações que demoram pra essa educação. Ou então, uma guerra Um choque muito forte, que a cultura muda e todo mundo começa; a Europa mudou por conta disso. As pessoas urinavam na rua um século antes. De repente com a Guerra que tudo ruiu, começaram a querer cuidar. Então, o Brasil não teve essa sorte e esse azar. Ainda bem, né? Teve muitas guerras que foram escondidas, mas enfim… Então, a gente pensou que não ia dar tempo. Então, a gente começou a mapear o quê que é que já tem naturalmente na gente que, de repente, está escondido. Mas, que tem uma super energia de transformação. Então, invés de ficar tentando educar as pessoas que ela tem que fazer, não sei o quê lá; adestrar as pessoas pra isso: cuidar do seu lugar, gostar de biblioteca, gostar do patrimônio público, gostar da rua. O quê que naturalmente eles vão fazer por impulso? Desde que sejam convidadas. Então: festa, brasileiro adora. E depois, descobri que o mundo inteiro adora. Alegria. A energia que vem da alegria é muito poderosa. E é mais poderosa que a alegria que vem do comprometimento, do que a energia que vem do comprometimento assim: Agora vou trabalhar, eu preciso ganhar dinheiro, né? A alegria que explode numa Copa do Mundo, que a gente sai decorando a rua. Numa festa junina, que as pessoas saem doando e não pensam que o seu está doando mais ou menos. “Ah, vou trazer pipocas.” “Trazer pipocas na festa.” Entendeu? E dá prás crianças. Então, essa coisa, a relação de doação que eu tenho para com as crianças. Então, tem um monte de códigos genéticos ou culturais com a gente há tanto tempo, que já são naturais que a gente tinha que estimular isso acontecer. Mas, direcionar isso não só pra uma Copa do Mundo que é efêmera, né, vshiiii, e some. O carnaval. Olha quanta energia que o Brasil joga no carnaval. Energia de dinheiro, de recursos, de medicação, de talentos humanos, é muita coisa. Mas com uma alegria em sete dias, depois some. Por que essa alegria? Se ela fosse convidada em outros momentos, não vem também? Se a gente conseguisse fazer uma ligação, uma ponte uma com a outra, será que não ia mudar a realidade? Então, a gente começou a buscar isso. E conseguimos coisas bem legais. Por exemplo, como o Ashoka fala: “Todo mundo pode mudar o mundo.” E pode. Está disposto a fazer isso. Mas, algumas coisas os impedem. A gente mapeou o que são essas coisas que fazem você não sair correndo que nem você sai pro carnaval, pra sair ajudando, né? Então, alegria é básico. “Se” é uma festa você não precisa convidar. A pessoa já sai se oferecendo. Você não precisa sensibilizar ela, escrever um convite; a pessoa: “Ah, posso ir também?” Ela já se convida. Você não gasta energia fazendo isso. A gente gasta energia criando uma atmosfera, sabe? você quer que as pessoas conversem na tua casa? Quer que vários amigos seus de lugares diferentes se conheçam? você faz uma festa que você bota o quê? Bota um monte de almofada no chão, deixa um “violãozinho” ali no canto, bota uma “musiquinha” meio som ambiente. Você estimula. Você não vai falar prás pessoas: “Ai, vocês sejam amigos, gente.” “Eu trouxe vocês aqui, pra vocês serem todos amigos, tá bom?” “Vamos combinar?” As pessoas vão fugir de você, não vão ser teus amigos. Não vão ficar lá. eu não vou, se você me convidar. Então, assim, sabe? Mas, você cria uma atmosfera que elas não precisam nem saber. Mas, tem almofada no chão é mais despojado, né? Senta assim. Você não vai convidar a família do teu namorado ou do teu pretendente pra um jantar sentado no chão, vai ter uma mesa, uns cristais, outro ambiente mais formal pra se apresentar, né? Então, sai, a gente vai criando; é muito de arquiteto isso, a gente cria um ambiente pra que isso acontece. E o ambiente pra que essas situações que a gente queira aconteça, é um ambiente onde teu talento é muito bem-vindo e reconhecido. Em que a gente não olha, não vê, não vibra escassez, mas vibra abundância. Então, em qualquer lugar tá cheio de recursos. Em qualquer lugar. No deserto, areia “é” recursos. Têm cidades inteiras que foram construídas com aqueles recursos que têm lá: areia, água, a lama de uma certa planta. O Egito fez um império inteiro assim. Não é que deserto é nada. É muita coisa acontecendo ali. Então, você tem que olhar, né? Então, o que a gente foi aprendendo a fazer é mudar esse olhar. Ao invés de você ver uma favela; tudo que você aprendeu que é favela; você vai focar o teu lá e vai ver a dona Joana que tem um monte de latinha de ervilha, de óleo, que é o recurso que ela tinha e com flores maravilhosas.flores que não tem no orquidário. Não tem na melhor floricultura que você foi, entendeu? Porque tem muito amor naquela flor. Então, você olha na favela você vê isso, você não fica só vendo a favela e: Que horror, a Prefeitura devia fazer alguma coisa. Então, a gente vê essa dona Maria, a gente vai correndo lá. Porque a vida tá lá. Onde é que tá o belo escondido? Onde é que tá o belo na favela? você vai correndo lá e começa a conversar com a dona Maria, pergunta a história dela. Que é o que vocês fazem. Aí, eu chamo vocês. Dona Maria começa a contar, porque primeiro ela fica surpresa que alguém percebeu. Porque aquilo lá é a vida dela. Ela criou. Já que aqui é tudo horror, eu vou criar um espaço de beleza pra mim, pra eu sobreviver. Tem a dona Joana, por exemplo, o quê que ela faz? Ela pendura a roupa dela; tem que lavar roupa o dia inteiro pra ganhar dinheirinho, entendeu? Só que ela não se dá por vencida. O que ela faz? Ela pendura a roupa dela em degradê. Ela faz um arco-íris com as roupas. Então, o branquinho, amarelinho mais “clarinho” bebê, amarelo mais escuro, laranja, vermelho, lilás. E é um arco-íris. Todo dia que tem loja é um arco-íris na casa dela. E ninguém vê, mas ela sabe. Agora quando alguém vê, reconhece. Que nem a gente, quando alguém reconhece alguma coisa que você adora fazer, você adora escrever tá lá sozinha escrevendo, ninguém sabe. Esconde, porque você tem medo, uma coisa tão valiosa. Aí, se alguém pega, sem querer, e gosta; se alguém pega, você fica possesso, né? Mas, se gosta vira a melhor amiga do mundo pra você. “Ah, você gostou?” Mesmo que você não acredita, fica testando: “Ah, mas é isso mesmo?” Dona Maria fica testando a gente: “Gostou da minha roupa?” “Mas como é que você reparou na minha roupa?” Mas, depois ela viu que é de verdade, que nós estamos ligando, aí ela começa a contar: “Sabe o que é que é?” “Desde pequena eu sempre gostei de cores.” Ah “E se você já reparou, vem cá, vem cá comigo.” “Eu vou te mostrar aqui também.” “Esse aqui você não tinha visto.” “Olha essas aqui que espetáculo.” Ela começa a contar e vai pegando fogo. A gente junta a dona Maria, junta a dona Joana, junta o seu Joaquim que fazia barcos no Nordeste. Então, essa história volta a virar realidade agora. Quando eles contam as histórias. Bota todo mundo junto e fala assim: “Ah, você não conhece a história da dona Joana.” Aí, você começa a contar. “Dona Joana, conta.” Quando ela começa a contar ela vê que os olhos do pessoal da comunidade dela também gostam. Aí: “Posso contar a minha agora?” “Conta, conta aí.” Aí começa a chegar crianças, começa a chegar outras pessoas, aí vão ficando personagens que jamais sabiam que tinha tudo aquilo. E aí, cria o clima bom de construir. Então, a gente fala assim: “Está, e o que a gente pode fazer junto com tudo isso aí?” Que beleza. Com o conhecimento de coisas de dona Joana, com as plantinhas da dona Maria. “Ah, vamos fazer uma praça” E o seu Joaquim faz aqueles barcos espetaculares, faz os bancos, que não é qualquer banco, que em nenhum lugar tem. E aí, a gente começa a provocar. Fala assim: “Olha, mas eu não quero qualquer praça.” “Eu quero assim uma praça melhor que a do Gonzaga.” Que é na praia, né? Porque a gente gosta daquela disputa. Eu quero, quando as pessoas chegarem aqui ela vão ter que falar que o Gonzaga; elas vão ficar morrendo de inveja. Então, eles começam a se animar: “Ai vamos, vamos, vamos.” Aí faz. Essas coisas são do ser humano, né? Brincar até com algumas coisas que são meio negativas, né? Com a sua inveja, né? Gonzaga vai morrer de inveja da gente Tipo assim o Morumbi vai chegar aqui, vai falar: “Eu quero um desses.” A gente fala assim: “Não pode.” “Só aqui.” “Tem uma aqui, mas não vai ter.” “Sinto muito.” Então, essa coisa, que naturalmente você quer. “Vamo fazer, vamo fazer agora.” E aí constrói. Construiu a primeira; geralmente, busca espaços públicos que aí mais pessoas; que já é um treinamento de doação. Então, eles vão fazer uma coisa não só pra eles. Vai ser pra eles. Vão ficar muito felizes, vão ser super realizados, mas a gente fica muito mais feliz; qualquer ser humano fica muito mais feliz quando eu me dou; isso é uma coisa também que dá muita energia na gente, talvez a mais forte. Quando a gente se dá conta de que a gente foi realmente importante pra alguém. Que é a nossa atuação foi realmente significativa, pra vida de outras pessoas ficarem mais maravilhosas. Que é o que o Marshall da Comunicação Não-Violenta fala assim. Que um dos maiores prazeres que a gente tem, e muita gente acredita que é o maior prazer. É quando eu me dou conta, quando eu sinto que eu tornei a vida de alguém mais maravilhosa.

P/1 – Fantástico. Nossa, tanta coisa

R – Os Guerreiros sem Armas são isso. São jovens que vão lembrar pras pessoas que a vida delas é maravilhosa.

P/1 – Não são necessariamente arquitetos?

R – Não.

P/1 – Esses jovens chegam…

R – Começou com arquitetos porque é o que a gente dava conta, o primeiro ano. Mas, já no primeiro ano um monte de gente que via; porque a gente mandou prás faculdades de arquitetura, né? Os cartazes. Mas, gente de outros cursos “viam”, “enlouqueciam” Aí, começava a escrever cartas. Alguns xingavam a gente. “Mas, como é que pode?” “E a democracia?” Falou assim: “Pode” “A gente é que manda.” “O curso é nosso.” “Não vai vir, pronto” Era tanta gente escrevendo que aí eles viam, e escreviam cartas chorosas, não sei o quê lá. Porque a carta tinha que nos emocionar, né? Então, eles; um dos critérios é: Você tem que escrever uma carta dizendo por quê você quer participar da Escola de Guerreiros sem Armas. E o critério é: Se a carta; quanto mais nos fizer chorar, mais chance você tem. E eles caprichavam. Então, eles faziam você chorar bem. Aí falava: “Vamos, ter que deixar esse menino vir.” “Tudo bem que ele é médico, jornalista, mas vamos deixar ele vir e vamos ver o que acontece.” Agora esse último ano, por exemplo, essa última Escola de Guerreiros, que foi mundial; que foi agora em janeiro. Aí veio jovem; a gente abriu tudo Então, veio morador de rua, jovem morador de rua, vieram indígenas do meio do Acre, oito horas de barco de qualquer cidade, veio universitário, veio milionário, veio tudo: mexicano, paquistanês, tinha essa menina que não podia ser tocada, sempre com a burca.

P/1 – Árabe?

R – Paquistanesa. E veio, todo mundo tem que andar junto. E, foi mágico assim. E também era uma utopia pra gente. “Sei lá se vai funcionar.” “Mas, vamos fazer.” Que nem o museu. “Ah…”

P/1 – É melhor que as Nações Unidas.

R – Ah, é muito mais legal “Ah, mas e tradução ra tudo isso?” “Ah, não sei.” “As pessoas vão se virar.” E no começo eles queriam matar a gente: “Ah, mas como um curso tão caro e tão difícil e vocês não pensaram a tradução.” Falei; “Ah, mas tem tradução em inglês.” “Ah, mas tem tanta gente diferente.” “Ah gente, vocês se viram.” Então, ficava assim no começo…

P/1 – Um desafio, né?

R – Desafio de você, a sensação; não é nosso o desafio é do planeta. E depois, a gente; deixava eles entrar bastante, aí quando entraram bastante, falei: “Está.” “Se você for trabalhar na África, tsunami;” “Você quer salvar o mundo, não quer?” “Helicópteros, chega lá e a pessoa não fala a sua língua.” “O que você vai fazer?” “Ah, onde está o outro avião?” “O tradutor?” “A Organização das Nações Unidas (ONU) não mandou?” “Ahnnn.” Você vai morrer? A gente fala sempre palhaçada também, porque eles ficam bravos, a gente começa a fazer palhaçada com eles. Não leva a sério assim, sabe? “Está brigando por quê” “Você não quer mudar o mundo?” “Vai, vai, corra, corra, corra” E o curso é vivencial, então é aprender, fazendo. Que eles adoram isso. Só que eles pensam que aprender fazendo é assim: a gente vai dar uma atividade, uma dinâmica e eles vão fazer. Não Vai entrar no meio daquele lixo, no meio daquela lama. “Mas aqui vai contaminar, vocês são responsáveis.” “O que que você vai fazer pra não ser contaminado?” “O mundo precisa ser salvo.” A gente dá exemplos, né? “Vai fazer que nem o seu Governo?” “Porque o seu Governo está vendo esse lixo, também não faz nada e fala exatamente o que você está falando.” “Não é isso que ele fala?” “Não dá pra fazer nada, porque esses caras são pobres.” “Vai continuar fazendo?” “Então, o que você vai fazer?” Aí começa a gostar dessa idéia, né? De ficar livre.

P/1 – Edgard, pra gente começar a finalizar.

R – Ah, vai começar a finalizar?

P/1 – Uma ou duas perguntas assim. Ontem a gente falou muito da Ashoka, né? Mas, como é teu ingresso na Ashoka? Foi na Argentina ano passado…

R – Foi.

P/1 – Como teu ingresso na Ashoka potencializou a sua atuação?

R – Hum. Consigo detectar acho que duas maneiras fáceis. Bom, a primeira que acho; não sei se falam isso, mas todos sentem isso: foi a impactante a metodologia de entrevista. Foi muito poderoso “pra mim” poder relembrar de onde eu vim. Qual foi a caminhada que eu fiz pra; eu fiz e que a gente fez no Elos pra chegar onde a gente chegou pra fazer isso. Então, foi por conta dessa entrevista que eu fui lembrar da questão do Nazismo, essa história assim de fazer a conexão de uma coisa com a outra, né? Isso acontece com muitos fellows. Então você relembrar essa caminha. O que “que” está? Qual é o adubo desse solo que você está semeando? Isso foi impressionante, dessa consciência mais ampla, mais holística, do meu vibrar, né? Isso foi uma super contribuição, inestimável. Outra coisa, que é outro papel da Ashoka também, essa coisa de bancar, ter uma sustentação financeira por três anos. É um fôlego assim. Você ter que fazer, mudar o mundo, pagar o aluguel, deixar dinheiro em casa, ou deixar as pessoas sofrendo em casa porque não tem dinheiro, né? Essa preocupação; então, a carne que sai, e você poder ser só criativo sabendo que você tem esse respirar. E, principalmente, porque também é um respirar que tem um tempo. – Eu adoro – isso também Jamais eu queria ser sustentado pela Ashoka ou por qualquer pessoa, né? Isso mata, na verdade, o protagonismo. Você ser sustentado mata a sua criatividade. Então, tem que ter um pouquinho de dor, de medo aí. Então – acho – que isso também é pouco; bem o que a Ashoka faz, ela te dá o suficiente, né? Mas, dá um fôlego muito bom. Então, acho que isso é o grande; é uma outra questão. E outra questão ainda insípida, que eu vejo como super valor, mas que a Ashoka está começando isso agora e que pra gente é essencial há muito tempo e tem muitos fellows que sentem falta disso há muito tempo é essa questão da rede. Então ainda não é de fato uma rede. É um coletivo. Um monte de mentes brilhantes e idéias super criativas. Idéias que saem, sabe, do nada. Com poucos recursos. Pessoas que conseguiram fazer; todos nós temos histórias brilhantes, né? Então, eu fico ouvindo as histórias dos outros, eu fico: “Gente, é muito mais legal do que eu fiz.” “olha, mas que maravilhoso.” “Como é que você conseguiu fazer isso?” Então, assim, você vira fã de todo mundo. Então, pra mim esse potencial que tem, se a gente conseguisse fazer isso virar uma cadeia de ações; da aquela coisa que eu “tava” falando ontem, né? Eu gosto de ver isso como uma receita, como ingredientes, né? Alguém tem uma farinha espetacular. O cara pegou do nada e fez uma farinha super fina, a melhor farinha do mundo. Outro tem uma colher de pau, que é uma madeira que ele extraiu de tal lugar, que nunca quebra, pode entrar no fogo, sabe? Você tem o sal, eu tenho o forno. Tem um monte de produtos maravilhosos separados. Que não mudam o mundo. Mudam o mundo da pessoa. Mas cada um de nós sabe que falta um monte de coisas nas nossas comunidades, nosso trabalho. Cada um de nós sabe a carência que tem, né? Que isso não está mudando o mundo ainda. Mas a idéia de poder juntar, sabe? Se fosse possível as pessoas sentarem, e isso é um pouco complicado, em círculo, de frente uma pra outra e falar: “Olha, o planeta está assim.” “O que é que eu tenho de melhor pra doar?” Sabe? Então, não só o produto que ele fez, o que ele realizou com a vida dele, mas os contatos que cada um dos fellows têm. O contato que tem com a mídia. O contato que tem com as suas comunidades. A credibilidade. O que você construiu em torno de você, pode mexer com muita gente. Então, eu vejo assim que a Ashoka tem potencial, como várias outras redes, mas são tão brilhantes esses fellows que a gente tem um potencial de fazer um movimento de reverter essa realidade no mundo. Essa reação em cadeia que a humanidade precisa pra acreditar, assim como nossas comunidades, essa alegria, construir uma praça, sabe? Dá início à uma reação em cadeia, disso começar a mudar a comunidade deles inteira. No ensino, na saúde. Mas, a partir de uma praça, a partir de alguma coisa bela. Se os fellows fossem capazes de fazer alguma coisa juntos, alguma coisa bela, uma praça juntos. Isso – acho – que ia reverberar muito forte pra humanidade. Ia ser um exemplo, né? Na gente, nas nossas comunidades, de sair essa reação em cadeia que é o meu projeto de transformar essa realidade no curto prazo que a gente tem no planeta inteiro. Acho que isso; pra mim é o maior potencial da Ashoka, que ainda não se realizou E eu fico assim me debatendo – acho – que nesse evento a gente está tentando isso também. Mas, me debatendo em, como é que a gente faz isso? Qual é a semente? Nas comunidades – eu já sei –. Mas, será que eu vou chamar os fellows todos pra fazer uma praça juntos? Pode ser. Mas, como é que pode fazer algumas coisas que quando a gente olha, a gente entende que a gente pode o que a gente quiser? Acho que os fellows precisam entender isso também.

P/1 – A última pergunta. Vindo pra essa questão de estar agregando essas pessoas na Conferência de Ilhas Marinhas do Brasil. Como os fellows que estão aqui, Kaká, você, o Alex, o Juan, que veio do Uruguai. Como vocês podem começar a pensar?

R – A gente já está pensando Ontem tivemos conversas muito boas. O Alex teve uma iniciativa fantástica. O Alex deu o primeiro passo de chamar isso, convidar e escrever o projeto. – Eu já achei – isso magnífico Escolher esse lugar. Florianópolis já é mágico, a ilha já é mágica. Um lugar que a gente está em cima do monte, vendo só beleza. Então, falei assim: “Algo importante vai acontecer aqui.” – Acho – que esse já foi o primeiro passo. O Kaká já é parceiro há bastante tempo, é importante trazer a cultura indígena. Isso porque o Alex tem essa clareza de saber que é importante a diversidade, ter pessoas de várias áreas diferentes, não só, teoricamente, ambientais, né? Já foi um, sabe, um segundo passo espetacular também. Eu acho que o nosso papel assim; a gente está tentando criar aqui uma reação em cadeia também. Está planejando; essa coisa invés de fazer uma carta escrita que ninguém vai ler, sabe? Fazer mais papel. A gente criar um vídeo, um pequeno vídeo com a ajuda de vocês que já estão envolvidos nisso. De fazer as pessoas chorarem, né? Um vídeo de despertar, que possa causar uma reação em cadeia nos fellows inicialmente, de quanto recurso eles têm, e de quão mais forte pode ser, como a gente pode se juntar, sabe? Um mais um, quanto vai ser muito mais do que dois, entendeu? Ou três, sabe? Mas, vai ser muito mais do que nove. Talvez despertar uma vontade, um interesse, um sentido de que a gente pode se juntar e fazer alguma coisa muito maior do que a enormidade, a “enormitude” do que a gente já tem feito. Nos nossos lugares. Porque a gente tem essa; a gente já está meio; tudo que gente faz, cada um no seu lugar já é muita coisa, a gente está sonhando muito mais coisas, e já não tem mais braços. Mas, a idéia, sabe, de dar uma respirada e pegar isso tudo que eu já fiz e olhar, ou voar um pouquinho pra fora disso e olhar, sabe, tudo que o Kaká está fazendo e conseguir entender uma ordem, um encadeamento disso, sabe? Essa farinha que eu faço, que é espetacular e que eu vendo pro mundo inteiro e todo mundo acha maravilhoso. Ela juntando com mais três, quatro, cinco vira um bole de chocolate com cobertura, com chantilly, com confeitos, com “velinhas” de parabéns, com todo mundo batendo palmas: Parabéns E aí vira a festa que a gente quer no planeta, entendeu? Então, essa possibilidade de você sair um pouco do teu território e olhar pro lado, né? Porque mesmo quando a gente faz parceria, a gente faz parceria pensando o nosso trabalho, né? Ah, eu vou fazer com ele, né? Então ele vai ganhar. O Museu da Pessoa vai ter mais um monte de material super legal de filmagem e eu vou ter um monte de tecnologia que possa usar na minha comunidade pra fazer o meu projeto, o meu sonho. Parar desse binômio, entendeu? Já não é mais ganha, ganha. É ganha, ganhamos Agora é o planeta que está pedindo. Não é mais o meu “valezinho”, não é mais a minha favela, não é mais as minhas crianças, nem as minhas mulheres, né? Não é mais o meu público que eu trabalho. Mas, a nossa ilha inteira está sofrendo. A nossa ilha inteira está em risco. O meu trabalho, o meu sonho inteiro está em risco se a gente não cuidar do planeta agora. Então, tudo que a gente reclama que o Bush não faz, que as Nações Unidas não faz. Talvez, a gente também não esteja fazendo. A gente não está largando o nosso peixe pra juntar todo mundo, entender que tem um peixe muito, sabe? Que o lago está em perigo. Então, não adianta ficar cuidando do meu peixe, que o lago está em perigo, ninguém vai ficar. Então, acho que assim, talvez o nosso desafio, o que a gente está tentando estudar aqui nesses dias é ver: O quê “que” a gente pode fazer sem ficar apontando erro? Se eu falar pra cada fellow, ou se alguém falar pra mim; “Você está errado” “Você deveria, você deveria, você deveria.” Nem meu pai, quando eu era criança falava isso, eu ouvia. Aí, você fica tentando fugir disso. Então, como é que a gente pode ser tocado pelo coração? Que “que” vai mobilizar a gente a querer fazer, naturalmente, com todo o prazer? Por que ”que” eu convido as pessoas pra uma festa e não pra um sacerdócio, uma tarefa: Vamos salvar o planeta? Mas, eu acho que o único jeito de fazer os fellows ou outras pessoas no mundo quererem pular pra dentro, largarem tudo que tem que fazer, ou largar um pouquinho, ou trazer tudo o que tem que fazer, num outro momento, é convidar pra alguma coisa que seja muito feliz, muito alegre. Então, esse é o nosso desafio agora. Como é que a gente; pra que festa a gente vai convidar eles? A gente tem três dias pra pensar nisso

P/1 – Edgard, obrigada pela entrevista. Acho que a gente podia continuar falando de muitas outras coisas. Mas acho que já está um bom retrato da sua atuação.

R – Já

P/1 – Muito obrigada, mesmo.

R – Obrigado, vocês.

 

 

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